#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: no centro da foto: Nôemia (Ana Lúcia Torres), personagem do filme “Quanto vale ou é por Quilo?” (2005), rodeada de crianças carentes para uma foto de ação de marketing da sua empresa filantrópica Stiner empreendimentos. Fonte: https://tvbrasil.ebc.com.br/cinenacional/episodio/quanto-vale-ou-e-por-quilo
Quanto Vale ou é por quilo é um filme dirigido pelo cineasta Sérgio Bianchi, lançado no Brasil no ano de 2005. A obra se constrói a partir de um viés crítico a respeito da lógica de expropriação dos recursos públicos pelo capital privado, protagonizada aqui pela empresa do terceiro setor chamada Stiner empreendimentos, que se utiliza de ações filantrópicas em comunidades carentes para enriquecer.
No que tange ao enredo da filmografia, o autor se utiliza de cenas do Brasil colonial, especificamente da lógica de exploração escravista, para fazer um elo de continuidade nos tempos modernos (séc. XXI). Ele pauta uma espécie de “escravidão contemporânea” e mostra que o vilipêndio e a rapina sofridos pela população negra escravizada nos tempos do escravismo colonial ainda existem, agora numa lógica de exploração capitalista que usufrui dos corpos racializados para capitalizar bens públicos por meio das suas “boas ações”.
Essa trama do filme pode nos levar a refletir sobre os últimos acontecimentos da política brasileira, sobretudo o escândalo envolvendo o superfaturamento de venda de vacinas por uma empresa do setor privado de medicamentos junto a membros do Ministério da Saúde. Esses fatos vieram à tona devido às investigações da comissão parlamentar de inquérito (CPI) [1], evidenciando ações predatórias do capital, que se utilizam inclusive de práticas como a corrupção e acúmulo de riqueza.
Caminhamos rapidamente em direção a quase 600 mil mortes decorrentes da COVID-19 no Brasil, e, apesar do início da vacinação da população, a porta para saída da pandemia que perdura há mais de um ano no mundo todo ainda parece longe. Não bastasse o caráter grave que a própria doença tem, outros fatores sociais, econômicos e políticos colaboraram para que a letalidade da doença no país fosse tão grande. Falta coordenação a nível nacional para o controle da propagação da pandemia e sobra negacionismo científico por parte do governo federal, fazendo com que chegássemos a esse número trágico, e também, que uma comissão parlamentar de inquérito fosse instalada para investigar os supostos, e agora, evidentes crimes cometidos por parte do principal ente federativo da nação.
Com o prosseguimento da CPI, descobriu-se que o governo federal realizava negociações a fim de superfaturar vacinas e insumos, engordando o lucro de farmacêuticas e terceiros dentro do Ministério da Saúde, de tal sorte que a mensagem que se anuncia é a seguinte: mesmo com a morte de mais de meio milhão de pessoas, o que deve ser priorizado é o lucro. Com um sorriso digno de filantrópicos, o capital privado dos medicamentos, tal qual na da obra de Sérgio Bianchi, esconde a frase dita em determinado trecho do filme “é a direita faturando em cima da permanência da miséria” e por que não acrescentar "e dos caixões".
A corrupção é de fato um ato condenável, porém, não se deve fazer a crítica a essa ação somente por uma concepção moral. A corrupção, como aponta o historiador Benjamin Fogel, é um ato intrinsecamente político (FOGEL, 2021). Portanto, a anticorrupção também deve ser elevada para o campo do político, no qual está relacionada com as outras formas que estruturam nosso modo de produção: direito, economia e Estado. O que se materializa na disposição de corromper, no que tange às estruturas dos bens públicos, é o que o historiador Benjamin Fogel chama de “privatização da vida pública” (FOGEL, 2021). Ora, quando entes representantes do capital se utilizam das máquinas do Estado para acumular riqueza, esse subterfúgio se explica em sua totalidade pela própria característica da fase atual de acumulação do modo de produção capitalista e sua crise estrutural em sua fase neoliberal.
“O neoliberalismo não é um desvio da acumulação, mas sua majoração. Formações sociais pós-fordistas (neoliberais) operam formas sociais capitalistas, sendo esta as determinantes daquelas. Qualquer constatação crítica que seja rigorosa cientificamente e fecunda só pode analisar a crise presente, exponenciada pela pandemia, tendo em vista que se trata de crise do capitalismo.” (MASCARO, 2020, p. 10)
Assim sendo, a corrupção não seria portanto um desvio, e sim mais uma das engrenagens de acumulação do capital. Tendo isso em vista, as pautas de luta anticorrupção precisam ser incluídas dentro de um projeto de emancipação e superação das estruturas sociais criadas ao longo de mais de 300 anos de escravidão e de mais de 100 anos de uma rearticulação dessas opressões e super explorações que tem a classe, a raça e o gênero como elementos de subsunção dessa lógica de expropriação, como bem nos mostra Bianchi em sua obra.
Por fim, resta fazer algumas perguntas: quanto vale a vida de 500 mil pessoas que se foram por uma doença para a qual já existe vacina? Quantos dólares valem o sufocamento de pretos e pretas sem medicamentos para intubação? Quanto vale a perda e a impossibilidade de enlutar entes queridos que perderam a vida nesses quase dois anos de pandemia? Quanto vale... ou é por quilo?
Willian Marcos Antonio Silva
Graduando em História pela USP
Referências bibliográficas e nota:
[1] CPI da Covid: Quem é quem no escândalo Covaxin - BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57647163>. Acesso em: 14 jul. 2021.
CPI da Covid: Quem é quem no escândalo Covaxin - BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57647163>. Acesso em: 14 jul. 2021.
FOGEL, B. A corrupção é a maior instituição do Brasil. Disponível em: <https://jacobin.com.br/2021/02/corrupcao-e-a-maior-instituicao-do-brasil/>. Acesso em: 14 jul. 2021.
MASCARO, Alysson. Crise e Pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020.
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