Fontes: Estado de Minas e Portal T5, respectivamente.
#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Duas imagens separadas por uma linha branca. Na primeira temos família Kim, filho, pai, mulher e irmã. Atrás deles, pilhas de caixas de pizzas verde e amarelas. Os quatros estão olhando para o celular no chão, assistindo a um vídeo onde se ensina a dobrar caixas de pizza de maneira mais ágil. Já na segunda, temos uma rua alagada até os joelhos com água misturada com barro e esgoto. Ao centro, um entregador informal de aplicativo de entrega de comida vestido com conjunto de roupa de chuva para motociclistas. Na mão direita, está segurando uma espécie de cajado e nas costas está com uma mochila vermelha de entregador escrita “iFood”.
Apesar das correntes ou senzalas terem deixado de figurar o padrão normal das relações humanas há alguns bons anos, hoje são inúmeros os relatos de pessoas em condições de trabalho que remetem a uma escravidão contemporânea. O filme Parasita (2019), do diretor Bong Joon Ho, recente vencedor do Oscar-2020 na categoria de melhor filme, pode nos ajudar a compreender melhor o porquê desse fenômeno.
Logo no começo do filme, nos deparamos com a seguinte cena: a família Kim busca um sinal de WiFi de graça para acessar à Internet e receber o sinal positivo da pizzaria contratante dos seus serviços de “dobradores de caixas de pizzas”. Seus salários variam em função da quantidade e da qualidade de caixas que entregam e estão sujeitos a cortes salariais arbitrários caso não correspondam ao esperado pela pizzaria. Como precisam alimentar-se, vestir-se, beberem e se abrigarem, os Kim sujeitam-se ao precário serviço que lhes é oferecido, sob as condições precárias que lhes são postas, sem deixar, jamais, de agradecer ao “WiFi generoso” pelo pão de cada dia.
Ao longo do filme, conhecemos mais da situação da família Kim. Eles moram num semi-porão sem condições mínimas de higiene. Quando, já na condição de servos “mais privilegiados”, ou seja, explorados sob condições mais humanas e dignas por essas “pessoas legais”, deparam-se com uma situação na qual, durante uma chuva, tem de voltar para casa correndo. É nesse momento que vemos o quão longe moram da família Park, o quão abaixo está a sua casa, e como um fenômeno da natureza pode ter um efeito diferente de acordo com a sua riqueza material – que o resultado de uma chuva não é apenas “céu azul e sem poluição”, mas, para uma parcela significativa da população no mundo todo, para os milhões de famílias Kim que há por aí, alagamento, destruição e centenas de milhares de desabrigados.
No Brasil, podemos ver as nossas famílias Kim atuando para redes de aplicativos que oferecem serviços, como o Rappi, iFood e Uber Eats. Estes ficam cada vez mais ricos às custas da crescente miséria daqueles que, em bicicletas, motos e dentro de carros, trabalham muitas vezes além das 44h/semanais previstas, sob condições de trabalho muitas vezes inóspitas e perigosas, sem garantia de renda mínima semanal ou mensal, sem garantia de direitos trabalhistas, segurança previdenciária, seguro, alimentação e transporte, ou qualquer outro tipo de direito que a classe trabalhadora tenha conquistado nessas últimas décadas.
As jornadas exaustivas, a sujeição a condições degradantes de trabalho e a restrição de locomoção dos trabalhadores, ainda que motivada por coerção econômica, configuram, dentro do art. 149 do Código Penal Brasileiro, como elementos que configuram o trabalho escravo. Traça-se, entretanto, de uma escravidão, ou melhor, para usar o termo do sociólogo do trabalho Ricardo Antunes, uma “servidão moderna”.
Assim, se os Kim precisavam de WiFi para ter acesso à alguma fonte de rendimento, também muitas das nossas famílias Kim no Brasil (os Silva, os Souza, os Santos etc.), precisam de redes móveis de internet para trabalharem nas seguintes condições [3]:
“Os entregadores, no entanto, não moram nesses bairros [Pinheiros, Paulista, Higienópolis]. Vivem principalmente na periferia ou em cidades da Grande São Paulo. Para chegar ao trabalho, percorrem até 30 km - às vezes, pedalando [...] Por isso, os ciclistas ouvidos pela reportagem relataram fazer jornadas de mais de 12 horas diárias, trabalhar muitas vezes sem folgas e até dormir na rua para emendar um horário de pico no outro, sem voltar para casa.” [Grifos nossos]
Sob as seguintes condições de trabalho:
“(...) ele [o entrevistado] percorre por volta de 80 km diários (...) Como a maioria, ele não usa - e as empresas não fornecem - equipamentos de segurança, como capacetes. Gabriel Di Pieri, 18, conta não ter visto muito a família nos últimos meses. "Chego em casa, tomo um banho e durmo. Não vejo ninguém".”
Quando lembramos que é a arte que imita a vida e não ao contrário, notamos que as coisas não podem ser vistas na sua aparência; ao contrário, deve-se buscar desvelá-las a fim de vê-las na sua essência. Quando fazemos essa operação, logo percebemos que a situação da família Kim revela-se como a situação geral de uma fração da classe trabalhadora mundial, fração está cada vez mais pauperizada e precarizada, ou seja, uma fração cada vez mais empobrecida, em péssimas condições de vida e trabalho, trabalhando na informalidade sem proteção social e nenhuma garantia de futuro e dependendo de aplicativos que dirão quem e o que irão transportar, mas jamais trabalhar nem para o aplicativo, nem para a empresa na qual transporta a mercadoria, nem para a pessoa que pediu a mercadoria, e muitas vezes nem para a empresa na qual aluga o seu meio de locomoção durante o transporte. A situação de trabalho da família Kim, bem evidenciada no começo do filme, mas não só, é uma situação universal.
Vemos, também, quem é o verdadeiro parasita – ou melhor, os verdadeiros – não só da família Kim, mas de todas as famílias daqueles que não dispõem senão da sua força de trabalho para viver: a família Park, que representa a classe capitalista – esta que, por sua vez, personifica o capital. Se Marx havia dito que “O capital é trabalho morto [máquinas e, mais recentemente, aplicativos] que como um vampiro se reanima sugando o trabalho vivo [força de trabalho] e quanto mais o suga mais forte se torna” [4], podemos dizer, numa linguagem que agradaria ao diretor Bong Joon Ho, que “o capitalista, personificação do capital, é um parasita que só reproduz seus lucros quanto mais suga da riqueza produzida pelo seu hospedeiro, deixando-o cada vez mais miserável”.
Rennan Valeriano
Graduando em Ciências Sociais (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019-2020.
Referência bibliográfica:
[1] MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política - Livro 1: o processo de produção do capital. 5aEd, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. págs. 262-263.
[2] Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65768/trabalho-em-condicoes-analogas-a-de-escravo- contemporaneo. Acesso em: 31/03/2020, 19h15.
[3] Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/05/dormir-na-rua-pedalar-30-km- e-trabalhar-12-horas-por-dia-rotina-dos-entregadores-de-aplicativos.html. Acesso em: 31/03/2020, 19h15.
[4] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/23/economia/1548260634_440077.html. Acesso em: 31/03/2020, 19h15.
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