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Cafarnaum: A infância e o meio

Atualizado: 21 de out. de 2021


#PraCegoVer [Fotografia]: Um bebê e um garoto de aparência triste, vestem roupas azuis, brancas e listradas muito sujas e estão sentados em um calçada disforme ao lado de um saco de lixo e uma vitrine de madeira improvisada que expõe calçados.


De acordo com o dicionário online Priberam (2021), o termo “Cafarnaum” designa tanto uma cidade bíblica da Galileia quanto significa um “lugar de tumulto ou de desordem”. Percebe-se que isso é muito sintomático e significativo quando a diretora libanesa Nadine Labaki nomeia seu filme de 2018 com esse mesmo termo, já que a história tem um garoto, Zain, de cerca de 12 anos como protagonista e não a cidade em si.

A premissa do filme narra a vida de Zain (Zain Al Rafeea), que está cumprindo pena em um reformatório por ter esfaqueado o homem que casou com sua irmã Sahar (Cedra Izam) de 11 anos. Zain o esfaqueou quando soube que esse, de alguma forma, havia provocado a morte dela. Porém, o fato mais importante que dá início a história é que o garoto está processando seus pais por terem colocado ele no mundo sem as devidas condições de criá-lo, ou criar seus 8 irmãos. A narrativa se desenrola através das respostas do garoto, dos advogados e dos acusados para um juíz e a partir daí todos os lados da história merecem, no mínimo, a nossa atenção e ponderação quanto a forma como a sociedade funciona e age, como a corrupção do Estado impede a execução das leis e como o lógica de exploração e lucro do capitalismo nos afeta.

Durante a obra, vemos Zain passar pela fome, alagamento de sua moradia, situação de rua, falta de acesso à escola, abuso, assédio e trabalho infantil. Ele é “funcionário” do dono do mercado, o marido pedófilo de sua irmã. Zain vende suco e balas com seus irmãos e vende drogas quando não lhe restam mais opções. Vale mencionar a fala de sua mãe, Souad (Kawsar Al Haddad), nessa ocasião:

"Que bom meu filho, que nosso suco [uma dose da droga, diluída] é mais caro que 1 kg de carne”.

O garoto passa por todas essas situações de forma muito madura e inteligente, mas sem perder a essência da ingenuidade infantil. Isso fica muito marcado logo no início do filme quando nota-se as brincadeiras dele com seus amigos. Todos criados durante a guerra, brincam com armas de papelão muito bem detalhadas, dividem cigarros e falam sobre seus trabalhos. O brincar da criança é sua forma natural de desenvolver o cérebro, de entender e se apropriar do mundo e portanto, espelho dele.

Veja a incompetência dos Estados e a ganância da parte mais privilegiada da sociedade para sanar essas questões que são direitos universais dos seres humanos, como comida, educação e moradia. O problema é claro, a desigualdade de distribuição de renda e a crise dos refugiados já é considerada a maior crise humanitária das últimas décadas, mas pouco se faz quanto a isso, pois a camada mais rica da população despreza a mínima existência dos seres incapazes de participarem ativamente do capitalismo. Parafraseando Orwell em seu livro “1984” (publicado em 1949), o constante “estado de guerra” permite aos governantes manter a população controlada por meio do pouco saneamento, emprego, comida, instrução e outras condições básicas de vida, assim, a sociedade entende que está passando por esses problemas por culpa da Guerra e não do Estado.

O trecho mais marcante sobre isso ocorre quando Zain (Zain Al Rafeea) é iludido quanto a imigração para a Noruega, o falsificador de vistos e traficantes de crianças, diz ao garoto que só pode fazê-lo viajar se ele puder “provar que existe” e quando ele vai atrás de seus documentos descobre não só que não existem (seus pais nunca o registraram) como também descobre que Sahar (Cedra Izam) havia morrido por conta de uma gravidez e o hospital não a tinha deixado entrar por ela também não possuir documentação. Ou seja, um papel, uma burocracia, vale mais para o Estado e outras instituições do que a própria existência de ambas as crianças.

Vale ressaltar que a realidade do filme conversa com a própria trajetória de vida da diretora e seu elenco. De acordo com a BBC (2019), Labaki só convida atores não profissionais para participarem de seus filmes e apenas graças à “Cafarnaum” que Zain Al Rafaeea e seus pais puderam se refugiar na Noruega, como também era o desejo de seu personagem no filme. Dito isso, é muito importante refletir e agir contra as realidades apresentadas na obra, ainda mais frente a atual situação da pandemia sanitária mundial. Se antes dessa, crianças como Zain já sofriam tanto, já se desenvolviam sem condições de vida digna, já eram exploradas, assediadas e vítimas do trabalho infantil e da falta de escolarização, se antes, garotas como a Sahar não tinham nem a oportunidade de serem atendidas por um pronto-socorro, pela simples falta de documentos, imaginem agora se elas têm direito à proteção básica e à imunização contra a covid-19.




Juliana Mendes Santiago

Graduanda em Biblioteconomia, na ECA - USP.



Referências bibliográficas:


CAFARNAUM. Direção de Nadine Labaki. Líbano: Mooz Films, 2018.


CAFARNAUM. In: PRIBERAM, Dicionário de Língua Portuguesa Online. Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/cafarnaum>. Acesso em: 13 out. 2021


COMO vida de menino sírio mudou após filme que estrela ser indicado ao Oscar. BBC News Brasil. São Paulo. 22 fev. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-47339144>. Acesso em: 13 out. 2021.


ORWELL. George. 1984. Rio de Janeiro: Antofágica, 2021.


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