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Livre pra Poder Voar

Podem prender nosso corpo, jamais nosso pensamento

(LIVRES, 2017)


#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: A foto retrata uma cena da série Irmandade (2019), dirigida por Pedro Morelli. Ao centro, o personagem Edson (Seu Jorge) se encontra de braços cruzados. Ele veste uma calça bege e está sem camisa. Ao seu redor, diversos detentos levantam o braço com o punho cerrado. No fundo da imagem, é possível observar uma parte das celas do presídio. Fonte: https://kondzilla.com/m/a-serie-irmandade-retrata-a-guerra-vivida-dentro-do-sistema-penitenciario-brasileiro


Segundo o dicionário, “irmandade” significa parentesco entre irmãos, união ou intimidade fraternal. Na série Irmandade (2019), entretanto, o termo adquire uma nova simbologia ao designar uma facção em ascensão. Dirigido por Pedro Morelli, o seriado relata a história da advogada Cristina Ferreira (Naruna Costa), a qual descobre que seu irmão Edson (Seu Jorge) está preso e lidera uma facção. Após uma tentativa falha de ajudá-lo, Cristina acaba sendo coagida pela polícia a se infiltrar na Irmandade e revelar o seu funcionamento.


Além da qualidade da produção, Irmandade (2019) também se destaca por oferecer um panorama do sistema prisional brasileiro. Embora seja ambientada em São Paulo nos anos 1990, a denúncia de violação aos direitos humanos em presídios e penitenciárias permanece muito relevante na atualidade. O estado do Pará, por exemplo, vivencia uma situação dramática nos últimos anos. Em julho de 2019, uma rebelião no Centro de Recuperação Regional de Altamira (PA) resultou na morte de 62 pessoas, tornando-se o segundo episódio de violência com maior número de mortes em presídios brasileiros, atrás apenas do massacre do Carandiru em 1992. Segundo denúncias de órgãos fiscalizadores e ativistas dos direitos humanos, a repressão e a humilhação só aumentaram nas prisões paraenses após essa revolta. Ao redor do estado, são registrados casos de tortura, agressão verbal, espancamento, corte de remédios e alimentos. Portanto, a atual crise carcerária exige uma discussão sobre direitos humanos e falhas da justiça brasileira.


Entre os diversos problemas enfrentados pelos indivíduos privados de liberdade, encontra-se a superlotação das celas. De acordo com a 14ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o total de pessoas encarceradas sofreu uma variação de 224,5% entre 2000 e 2019. Essa grande evolução da população prisional veio acompanhada por uma escassez no número de vagas: em 2019, o déficit chegava a 312 925 vagas (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020). Em virtude dessa situação, detentos precisam cumprir suas penas em celas que excedem a capacidade máxima de lotação, o que impacta diretamente o bem-estar desses indivíduos. No atual contexto de emergência sanitária, esses ambientes se tornaram propícios para a disseminação do vírus da covid-19, por causa da grande aglomeração de pessoas e da ventilação escassa. Portanto, além das diversas complicações trazidas pela superlotação, os internos ainda precisam lidar com o risco de contágio do SARS-Cov-2. Além disso, a pandemia dificulta o contato entre detentos e seus familiares, o que abre margem ao agravamento da violência dentro dos presídios.


Um outro fator importante se refere à questão racial. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), indivíduos negros [1] compunham cerca de 67% da população prisional brasileira em 2019. O encarceramento proporcionalmente maior de pessoas negras está atrelado ao racismo presente na sociedade e às políticas de extermínio do Estado. Segundo o filósofo camaronês Achille Mbembe, “[...] a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2016, p. 123, grifo nosso). Segundo essa perspectiva, algumas vidas são mais valorosas do que outras e – portanto – as agressões impostas a pessoas em situação de vulnerabilidade se tornam socialmente “toleráveis”. Consequentemente, grupos sociais privilegiados não apresentam incentivos para promover o desencarceramento de indivíduos negros.


Seria exaustivo listar todas as falhas do sistema prisional brasileiro em um único texto. Entretanto, é possível afirmar que elas afetam um aspecto essencial do cumprimento de pena: a ressocialização. Após a reinserção na vida social, os indivíduos precisam lidar com a falta de assistência do Estado e com o preconceito. Além disso, os traumas psicológicos sofridos durante o período de reclusão têm impactos duradouros. Nesse sentido, a arte pode ajudar nesse processo de transição. Por meio do docudrama Livres (2017), por exemplo, ex-detentos utilizam a arte como instrumento de denúncia. Dirigido por Patrick Granja, o filme retrata a realidade das cadeias brasileiras sob o ponto de vista daqueles que passaram pelo sistema. Além disso, a história do ator Leonardo Campos se apresenta como outro exemplo positivo do papel transformador da arte. Poucos meses após ser liberado da Penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos, Leonardo foi escalado para fazer o personagem Lindão na série Sintonia (2019), dos criadores KondZilla, Guilherme Quintella e Felipe Braga. Essa oportunidade proporcionou novas perspectivas para o artista, amenizando (ao menos em parte) as adversidades da vida após a prisão.


Dessa forma, é possível concluir que o sistema prisional brasileiro tem muito a evoluir. Primordialmente, os indivíduos privados de liberdade devem ter seus direitos respeitados como qualquer outro cidadão brasileiro. Antes que esse propósito seja alcançado, debates otimistas sobre os possíveis sentidos para o cárcere no Brasil se tornam indispensáveis.


Júlia Cristina Buzzi

Graduanda em Relações Internacionais (IRI-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2020/2021.

Notas e referências bibliográficas

[1] Considera os valores informados para presos de cor negra e parda.


AMADO, Guilherme. Peritos federais relatam tortura em prisões no Pará sob intervenção do Ministério da Justiça. Revista Época, 2019. Disponível em: <https://epoca.globo.com/guilherme-amado/peritos-federais-relatam-tortura-em-prisoes-no-para-sob-intervencao-do-ministerio-da-justica-24066968>. Acesso em: 03 maio 2021.


ANDRADE, Paula. O encarceramento tem cor, diz especialista. Agência CNJ de Notícias, 2020. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/o-encarceramento-tem-cor-diz-especialista/>. Acesso em: 03 maio 2021.


BARBOSA, Catarina. Após série de denúncias de tortura, Justiça proíbe OAB de entrar em presídios do Pará. Brasil de Fato, 2019. Disponível em:

<https://www.brasildefato.com.br/2019/10/10/apos-serie-de-denuncias-de-tortura-justica-proibe-oab-de-entrar-em-presidios-do-para/>. Acesso em: 03 maio 2021.


BARBOSA, Catarina. Um ano do massacre de Altamira: denúncias de tortura e presídios sem fiscalização. Brasil de Fato, 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/07/29/um-ano-do-massacre-de-altamira-denuncias-de-tortura-e-presidios-sem-fiscalizacao>. Acesso em: 03 maio 2021.


BARROS, Betina Warmling; SANTOS, Amanda Laysi Pimentel dos. As prisões no Brasil: espaços cada vez mais destinados à população negra do país. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo, ano 14, p. 306-307, 2020. Anual. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/anuario-2020-final-100221.pdf>. Acesso em: 03 maio 2021.


FERREIRA, Gabriela. Novos talentos contam como foi participar de “Sintonia”. Kondzilla, 2019. Disponível em: <https://kondzilla.com/m/novos-talentos-contam-como-foi-participar-de-sintonia>. Acesso em: 04 maio 2021.


FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 14. ed. São Paulo, 2020. 332 p. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/anuario-2020-final-100221.pdf>. Acesso em: 03 maio 2021.


MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 32, p. 123-151, dez. 2016. Tradução de Renata Santini. Disponível em: <https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf>. Acesso em: 03 maio 2021.


NASCIMENTO, Caio; TUCHLINSKI, Camila. ‘O teatro salvou a minha vida’, diz ex-detento que atuou em ‘Sintonia’. Estadão, 2019. Disponível em: <https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,o-teatro-salvou-a-minha-vida-diz-ex-detento-que-atuou-em-sintonia,70003012790>. Acesso em: 04 maio 2021.


POTTER, Hyury. Moro diz que não há tortura em presídios no Pará. Presas obrigadas a sentar em formigueiro discordam. The Intercept Brasil, 2019. Disponível em: <https://theintercept.com/2019/10/08/presas-forca-tarefa-moro-tortura/>. Acesso em: 03 maio 2021.


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