Fonte: Jornal El Pais
#PraCegoVer: [FOTOGRAFIA] Na imagem, Dilma Rouseff, ex presidente do Brasil, aparece de mãos dadas e erguidas com o ex-presidente Lula e aparenta estar emotiva, enquanto Michel Temer, mais afastado, observa os dois e bate palmas.
Passados mais de dois anos após o fim do processo de impeachment de Dilma Rousseff, consumado em agosto de 2016, uma série de produções cinematográficas documentais nacionais tem se proposto a discutir o cenário político brasileiro que envolve os movimentos e articulações responsáveis pela destituição da ex-presidenta. Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019), por exemplo, apresenta uma narrativa que se inicia ainda no governo Lula e se expande até a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, entrelaçando memórias históricas pessoais aos fatos políticos.
Ao apresentar imagens exclusivas dos bastidores do processo, expondo negociações, discussões e frustrações políticas, documentários como o de Petra endossam a disputa de narrativas, ainda em debate, sobre a legitimidade e a intencionalidade da destituição de Dilma Rousseff. Mais do que isso, estes evocam uma aura de degradação do fazer político nacional, a partir do esgotamento dos atores institucionais, principalmente dos políticos e partidos tradicionais, e da sistematização de práticas corruptas e da transformação dos interesses das elites em interesses nacionais.
Entretanto, para entender esse cenário, é preciso voltar no tempo e analisar a história política brasileira para além do segundo mandato de Dilma. Embora de maneira simplista, Petra Costa avança em relação a outros documentários anteriormente produzidos sobre a temática ao construir pontes e diálogos entre os episódios do passado e os do presente. Resgatando memórias do período ditatorial e da construção de Brasília, Democracia em Vertigem expõe como a escória da genealogia da política brasileira esteve presente durante os governos petistas e no processo de sua deposição.
A representação potente de Lula como a demonstração máxima do exercício democrático e de uma agenda reformista, simbolizada em forma de esperança para milhares de brasileiros, se contrapõe à prática conciliatória e corruptiva de alinhamento aos interesses do mercado e dos grandes bancos. Não apenas, os massivos escândalos de corrupção envolvendo os partidos da base aliada lulista no Mensalão de 2005 denunciam como a sustentação dos governos petistas se deu, em grande parte, às práticas denunciadas pelo partido ao longo de sua existência.
Para Petra, essa imersão em uma lógica que desvaloriza as alianças programáticas e se rende ao funcionamento sistemático aparelhado é fundamental para entender o impeachment de Dilma. Petra, pertencente à família Andrade Gutierrez, uma das principais envolvidas nos escândalos de corrupção nacionais dos últimos vinte anos, enquanto diretora, busca mostrar como, em suma, o impeachment de Dilma é construído, principalmente, para a manutenção de um sistema que tem como pilar fundamental a transformação dos interesses das elites em interesses nacionais.
O filme dirigido por Douglas Duarte, Excelentíssimos (2018), em complemento, explora com afinco como o chamado baixo clero, aliado dos governos petistas até o período anterior ao impeachment, em consonância com os partidos derrotados na eleição de 2014 e o próprio PMDB, se articulam para a tomada do poder. David Adler, em artigo publicado no The New York Times [1], argumenta que uma das principais ameaças para democracia na atualidade são os políticos de centro. Segundo o pesquisador, centristas são os mais céticos em relação à democracia e aos direitos civis, superando, inclusive, a extrema direita.
Ao pensarmos no caso brasileiro, ainda que Jair Bolsonaro, um dos principais representantes da extrema direita no Ocidente, tenha sido democraticamente eleito, sua vitória só foi possível a partir de dois fatores diretamente ligados ao centrão: o aumento massivo do antipetismo, fortemente construído com o apoio das bases ruralistas e conservadoras do Congresso, e a fortificação dos minúsculos partidos de centro, como o PSL, partido pelo qual o atual presidente foi eleito.
Em momentos de crise, como os que regiram o segundo mandato da ex-presidenta, as contradições dos projetos políticos se evidenciam e podem, como ocorrido nesse caso, resultar no aprofundamento de aspectos não democráticos de nossas sociedades. Assim, a partir da queda do preço dos commodities, duas das principais sustentações dos governos petistas – a elite empresarial fortemente beneficiada com exonerações fiscais e a elite bancária – arquitetaram a destituição da presidenta e colocaram em pauta um projeto político ultraliberal e extremamente conservador, utilizando como pano de fundo as pedaladas fiscais, prática recorrente à todos os presidentes da República desde a redemocratização, e se aproximando de um grupo político até então secundário – o centrão.
O desenrolar dos fatos, os quais culminam na eleição de Bolsonaro, nos levam a questionar, como indaga Petra, se nossa democracia não teria passado apenas de um mísero sonho efêmero. Talvez, este seja o momento para, enquanto sociedade, analisarmo-nos os limites de um sistema que se propõe a ser uma democracia liberal estando baseado na lógica corrupta dos interesses e no uso da justiça enquanto instrumento político.
Matheus Miranda
Graduando em Relações Internacionais (IRI-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2020.
Notas:
ADLER, David. Centrists Are the Most Hostile to Democracy, Not Extremists. 2018. Disponível em: <https://www.nytimes.com/interactive/2018/05/23/opinion/international-world/centrists-democracy.html?mtrref=www.google.com&assetType=REGIWALL>
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