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Bruce Lee vs. Romênia: a luta por sobrevivência abaixo das ruas de Bucareste

Fonte: Cineuropa.org


#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: A imagem mostra um túnel com o homem conhecido como Bruce Lee encostado ao fundo, olhando para a câmera. O túnel é cercado por objetos domésticos, como colchões, micro-ondas, rádios, ventiladores, todos de forma desordenada. Há apenas uma lâmpada ao fundo, logo atrás de Bruce Lee, que ilumina o túnel.


O que há de comum entre o ator Bruce Lee e a existência de crianças que vivem nos túneis subterrâneos de Bucareste? Absolutamente nada, além do nome que o conhecido ator asiático compartilha com o líder dessas crianças.


O tema parece confuso, não? E é assim que o espectador se sente no início do filme Bruce Lee e o Fora-da-Lei (Bruce Lee and The Outlaw, 2018) do diretor e fotógrafo holandês Joost Vandebrug. Um excruciante documentário que revela a realidade de crianças em situação de rua em Bucareste, capital da Romênia, através de uma narrativa não-linear que confunde os desavisados, mas que faz sentido na construção do quebra-cabeça que o filme se propõe a ser na mesma medida que trata sobre a questão habitacional na Romênia – uma das mais problemáticas da Europa.


Bruce Lee, famosa personalidade das ruas de Bucareste, é remanescente de orfanatos do final da década de 1980 – após o fim do regime comunista no país, os orfanatos foram desapropriados, deixando milhares de crianças sem lar – e acolheu algumas crianças na mesma situação, indo morar nos túneis subterrâneos com canos aquecidos, construídos para a calefação de moradias. Sujeitos do filme e não meros objetos de observação do diretor, essas crianças são conhecidas como The Lost Boys (Os Garotos Perdidos) e foram acompanhados por Vandebrug durante sete anos, gerando o documentário. Em paralelo à questão habitacional, o filme também explora a relação de paternidade construída entre Bruce Lee e o garoto Nicu (cujo apelido é o “Fora-da-Lei” adotado no título). Apesar de pouco desenvolver o historicismo que levou a essa situação, o filme faz um retrato fiel e cru da realidade dos túneis. Nicu, que ao final do filme tem dezessete anos, ainda tinha a aparência de um garoto de dez, revelando as precárias condições ao qual viveu com o passar dos anos.


Contudo, as crianças não são os únicos presentes nesse espaço subterrâneo, como revela o próprio Bruce Lee: só nos túneis comandados por ele há pelo menos setenta pessoas sem moradias fixas. A precária vivência subterrânea evidencia graves problemas sociais da Romênia e questiona-se: país membro da União Europeia desde 2007 e com crescente Índice de Desenvolvimento Humano, que problemática justifica o massivo déficit habitacional do qual Nicu também é proveniente?


Quando fazia parte da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a Romênia sob o regime comunista nacionalizou moradias e as direcionou para o uso dos trabalhadores estatais. Contudo, como eles se mudavam constantemente devido à demanda de trabalho, pessoas mais pobres – principalmente ciganos – se mudaram legalmente para os prédios no centro da cidade. Os ciganos (vulgo roma/romani), como o maior grupo de minoria étnica no país, têm grandes dificuldades de encontrar empregos, por estigma social e quando encontram, são de baixa renda.


O fim do regime em 1989 trouxe consigo a problemática da restituição de posse dessas moradias aos donos originais, já que agora não pertenceriam mais ao Estado e teriam valor comercial no mercado. Diferente de outros países do leste europeu que lidaram com a mesma questão, o governo romeno não ofereceu indenizações, apenas o direito de reintegração das moradias, causando o despejo dessas inúmeras famílias que ali moravam. De acordo com Zamfirescu (2015), o governo tem cinco anos para realocar essas famílias, no entanto, a fila de espera para habitações sociais passam de 10 anos, o que impossibilita o acolhimento nesses lugares. Ademais, o mercado residencial na Romênia tem os valores mais altos da Europa e após a crise de 2008, a situação piorou.


A agenda neoliberal também causou inúmeros despejos provenientes de reformas do governo na cidade – número elevado com a entrada do país na União Europeia em 2007, pois os fundos do bloco econômico incentivou o boom de reformas arquitetônicas na cidade para responder a um padrão de capital europeia. Isso diz respeito a uma estratégia e projeto de longa-duração de higienização da cidade disfarçado como uma proposta de desenvolvimento urbano. Depois da crise imobiliária de 2008, o porcentual de romenos que sofrem com privação residencial é de 28,6%, comparado com uma taxa de 6% de todo o restante da Europa, denotando a discrepância entre a quantidade de pessoas que não tem moradia no país e o restante do continente [1].


E o que acontece com essa população durante a pandemia de covid-19, que teve seu primeiro caso no país em fevereiro de 2020? O governo aprovou multas às pessoas que não respeitassem o lockdown levando até à prisão, dependendo da gravidade do caso. Contudo, isso não pode se aplicar a população em situação de rua. Para eles, foram montados abrigos provisórios, contudo a distribuição de máscaras, artigos de higiene e alimentos ainda ficou atribuído às ONGs que já os assistiam, com baixo apoio governamental. Alina Constantin, moradora dos túneis, denunciou em entrevista ao jornal France 24 [2] o abandono por parte do governo, que os invisibiliza diante das necessidades da sociedade civil. Além disso, como mostrado no documentário, eles sofrem represálias pela população, que preconceituosamente os veem como ameaça, o que se intensificou com o vírus – como potenciais transmissores, há relatos de expulsões sofridas de dentro dos transportes públicos.


Bruce Lee revela o seu sonho de comprar um hotel abandonado para que todas as pessoas dos túneis possam ter melhores condições de vida. Nicu, graças a Raluca – assistente social de uma ONG – é levado a um antigo abrigo de animais, moradia adaptada para algumas crianças, depois que sai do hospital, onde passou três meses desenganado de uma pneumonia, agravada pelo garoto ser soropositivo sem tratamento. Afinal, sobra a dúvida: quando o governo romeno – que reflete o de outros lugares – enxergará “Os Garotos Perdidos” como cidadãos-sujeitos fora do estigma social das baixas condições de sobrevivência da rua e os concederá direito à dignidade?


Larissa Karoline Oliveira

Graduanda em História (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019-2020.



Referências Bibliográficas


[1] VRABIESCU, Ioana. Evictions and voluntary returns in Barcelona and Bucharest: practices of metropolitan governance. Intersections. EEJSP 2(1): 199-218.

[2] Corona virus crisis hits Romania’s invisible homeless. Revista France 24. Disponível em: <https://www.france24.com/en/20200327-coronavirus-crisis-hits-romania-s-invisible-homeless>. Acesso em: 01. Jul. 2020.

SHORT, John Rennie. The Unequal City: Urban Resurgence, Displacement and the Making of Inequality in Global Cities. Londres: Routledge, 2017.

LANCIONE, Michele. Revitalising the uncanny: challenging inertia in the struggle against forced evictions. Environment and Planning D: Society and Space 0(0), 2017, pp. 1-21. DOI: 10.1177/0263775817701731.

ZAMFIRESCU, Irina Maria. Housing eviction, displacement and the missing social housing of Bucharest. Calitatea Vietii, XXVI, nr. 2, 2015, p. 140–154.

Bruce Lee and the Outlaw. Disponível em: <https://www.bruceleeandtheoutlaw.com/>. Acesso em 26 abr. 2020.

The Lost Boy Found - WayBack Machine - Internet Archive. https://web.archive.org/web/20150509172555/http://joostvandebrug.com/index.php/project/essay/ Acesso em 26 abr. 2020.

Joost Vandebrug: ‘Bruce Lee and The Outlaw’ was my life - an interview with the director. Disponível em: <http://ubiquarian.net/2019/07/joost-vandebrug-bruce-lee-and-the-outlaw-was-my-life/>. Acesso em 25 abr. 2020.

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