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Explicando o Coronavírus e o mito da pandemia democrática


#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: À direita da imagem estão dois agentes de saúde, inteiramente com roupa de proteção, carregando uma criança à esquerda, de forma pouco delicada e sem equipamentos para isso. Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/21/album/1429627341_379648.html


Se há coisas impossíveis de evitarmos como seres humanos, essas são a morte, os impostos e as pandemias. É assim que Maryn McKenna, jornalista especialista em saúde pública introduz o episódio “A próxima pandemia” da série Explicando, exclusiva da Netflix. O episódio, quase que como uma premonição, fala sobre o nosso futuro incerto como humanidade e como devemos lidar com as próximas pandemias, antes mesmo de saber que o ano de 2020 seria marcado pelo COVID-19. No entanto, apesar de contextualizações corretas sobre os termos biológicos, o episódio apaga uma realidade importante dentro do contexto pandêmico: há regiões que adquirem mais sequelas que outras.


A série aborda os princípios básicos para compreender o nascimento dos vírus responsáveis pelas pandemias, mas esquece de relatar que há diferenças entre os sistemas de saúde e poder aquisitivo dos países afetados por elas. O ecologista de doenças Peter Daszak expõe que os vírus nascem em regiões cujas populações convivem mais com animais silvestres, praticam mais caças e são submetidas a mercados abertos, sem meios adequados de socialização da comida. Além disso, esses países também são carentes de investimento em saúde pública, falta de acesso a saneamento básico e são economicamente incapazes de acessar recursos biotecnológicos para comprar vacinas com a rapidez com a qual países economicamente desenvolvidos, como Estados Unidos da América ou a Rússia, compram.


Mas afinal, que países são esses? Estamos falando, majoritariamente, dos países com menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), concentrados principalmente no sul global. Estima-se que, em 2019, a lista de países com menor IDH era composta por 80% de países da África, América latina e central, como Burundi, Haiti e Serra Leoa. Segundo a OMS, a lista de países mais pobres concentram 93% das doenças no mundo. Entre os fatores, está que tais países subdesenvolvidos contam com 52 milhões de pessoas sem acesso à água potável. Sabendo disso, fica mais difícil acreditar no discurso esperançoso de Bill Gates quando diz, na série, que a tecnologia tem feito avanços inimagináveis na luta contra doenças. Se tem feito, tem feito onde? E para quem?


Pensando agora, no momento mais atual possível a luta contra o vírus popularmente conhecido como Coronavírus podemos ver as batalhas que os países subdesenvolvidos têm travado. O continente africano, por exemplo, mesmo com taxa de contágio baixa se comparado aos outros continentes, necessita de um financiamento superior a 1,2 trilhões de dólares para combater o Covid-19, como divulgou o FMI (Fundo Monetário Internacional). Outro exemplo, e desta vez não indo muito longe, está no próprio Brasil. Tomando a cidade de São Paulo como base, a realidade mostrou-nos que os bairros paulistanos mais pobres não só são centros maiores de disseminação do vírus, como também de mortes causadas por ele. Mais de 40% dos óbitos registrados ocorreram nos 20 bairros mais pobres, sobretudo pois os moradores dessas regiões não puderam ficar em casa no período de quarentena e também pela falta de leitos disponíveis por UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) em seus bairros, explica o colunista Rodrigo Gomes, da Rede Brasil Atual.


É importante repensar, então, quão unidos estamos quando acontece uma epidemia mundial. Embora o comportamento otimista apresentado na série Explicando seja visando um avanço científico, é preciso encarar uma pandemia pelo que ela é: antidemocrática. É ingenuidade pensar que as classes são atingidas de forma equivalente e que o caminho para chegar até uma cura é contíguo, quando na verdade ainda lidamos com questões sociais mais antigas e de base no nosso próprio território. É difícil, em um país como o Brasil, onde 35% das cidades sofrem com falta de saneamento básico, acreditar que para assegurarmos a saúde basta alcançarmos uma vacina para a pandemia atual. Não temos só esta pedra no nosso caminho, temos todo um monumento a demolir.



Guilherme Cavalcante

Graduando em Letras Português / Alemão (FFCLH-USP), autor dos artigos “Memórias Inventadas”: uma viagem às memórias compartilhadas entre a população corumbaense e o poeta Manoel de Barros” (Instituto Acaia, 2018) e “O cinema português de Manoel de Oliveira: representações do amor e o mal-estar modernista” (Mosaico-UNESP, 2020).



Referências bibliográficas

Explicando: A próxima pandemia (Ezra Klein, Joe Posner, 2019)

CYMBALUK, Fernando. No Brasil, 35% das cidades sofrem com doenças ligadas a falta de saneamento. Notícias UOL, 2018. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2018/09/19/saneamento-basico-doencas-dengue-chinkungunya-ibge.htm>. Acesso em: 07, outubro de 2020.

África precisa de financiamento para lutar contra a pandemia, diz FMI. Notícias UOL, 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/10/09/africa-precisa-de-financiamento-para-lutar-contra-a-pandemia-diz-fmi.htm>. Acesso em: 09, outubro de 2020.

SCHWARCZ, Lilia M. Quando acaba o século XX. São Paulo, Companhia das Letras, 2020.



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