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Os desastres e os laços invisíveis que nos unem


#PraCegoVer: Cena do filme Threads, de 1984. Foto em tons opacos, neve caindo, fundo desfocado. No centro, um policial de trânsito, identificado pelo Quepe com uma faixa amarela, segurando uma arma, olhando para o horizonte, com o rosto sangrando e enfaixado de modo a cobrir quase todo o rosto exceto os olhos e boca. Fonte: https://www.moviemuse.net/movie-review-threads-1984/


A pandemia da covid-19 não é uma surpresa, pelo menos para as especialistas da área, que há anos alertavam para a possibilidade de que novas doenças epidêmicas pudessem surgir e se espalhar pelo planeta [1]. A surpresa, para a maioria de nós, foi a rapidez com a qual a pandemia revelou o quanto nossas vidas estão conectadas por meio de diversos mecanismos delicados. Por exemplo, nós não costumamos nos preocupar, a princípio, se haverá álcool gel na farmácia ou arroz no mercado; escassez de produtos e aumento veloz de preços são uma face dessa intrincada rede de relações e, principalmente, expectativas, que são fundamentais para que possamos viver e planejar nosso dia a dia. Em países como o Brasil, México e outros do Sul Global, os efeitos dessa quebra de expectativas causada pela pandemia são ainda mais perversos. Primeiro, pela carência prévia que enfrentamos em termos sociais e econômicos. Segundo, pelo fato de vivermos sob governos que deliberadamente se recusaram a reconhecer o perigo e enfrentá-lo de forma coordenada.


Nesses últimos 8 meses, as artes têm se revelado algumas das principais riquezas que temos: ao mesmo tempo em que nos permitem escapar da realidade, nos ajudam a dar sentido a ela. Nesse sentido, admito que a realidade do covid-19 está contaminando a forma como vejo filmes: procurando por detalhes relacionados aos novos hábitos, como o uso de máscaras, e tentando relacionar o enredo com a realidade do “novo normal”.


Se, quando estamos tristes, gostamos de ouvir músicas tristes porque elas reafirmam para nós a validade de nosso sentimento [2], acho que o mesmo pode ocorrer com nossa inclinação para filmes em determinados momentos da vida. Para mim, nesses tempos são os filmes apocalípticos que se mostram mais adequados às sessões noturnas em casa; nesse texto, destaco dois que me marcaram profundamente.


Em março, assisti Threads (1984, Dir. Mick Jackson), um filme britânico feito para a TV, lançado em meio ao recrudescimento da Guerra Fria. Nele, os efeitos de uma guerra nuclear na Inglaterra foram representados em forma de documentário, que conseguiu transmitir como nossas vidas, de todos nós, no mundo inteiro, estão interligadas, e como o rompimento desses fios invisíveis que nos conectam pode levar ao colapso social. Nossas vidas, que parecem tão independentes, na realidade só podem seguir porque milhões de pessoas, realizando suas atividades diárias, sem se dar conta, permitem que nós possamos planejar e viver as nossas. Por fim, a reconstrução é tão pior quanto a guerra; no limite, o trabalho e a luta pela sobrevivência obscurecem as relações humanas a tal ponto que é o sentimento de solidão, que o filme transmite tão bem, que nos marca; um mundo no qual as pessoas precisam tanto umas das outras, mas onde não há mais o diálogo, o afeto.

Miracle Mile (1988, Dir. Steve de Jarnatt), eu assisti em maio. Aqui, o idealismo e a euforia de um casal que se apaixona dão lugar ao cenário tão surpreendente quanto quase absurdo de uma guerra nuclear cujo epicentro é Los Angeles. Mas o horror e a ansiedade são contrabalanceados pelos pequenos, mas valiosos, gestos de generosidade, carinho, e pelo sentimento de responsabilidade. Os protagonistas são guiados por esses princípios reforçados em meio ao caos. Com uma excelente trilha sonora feita pela banda Tangerine Dream, a fotografia viva, brilhante pelo uso do Neon, o filme transmite a raiva e desespero mas, no final, a balança pende para a solidariedade e o amor.


Não vou exagerar a ponto de dizer que a pandemia da Covid-19 pode se comparar ao tipo de desastre que Threads e Miracle Mile apresentam. Mas o que esses filmes tentam transmitir, o sentimento de surpresa, raiva, solidão e incerteza, certamente permeia nossa realidade com mais força quando estamos todos os dias preocupados com nossa saúde e de nossos familiares, quando se desnudam as intrincadas relações que permitem que nós possamos realizar nossas tarefas diárias; e quando as mesmas responsabilidades continuam chegando. A questão que fica é: como iremos seguir? Nos afastando uns dos outros ou fortalecendo e protegendo os laços invisíveis que nos unem?


Laura Pimentel Barbosa

Doutoranda em Ciência Política pelo DCP – USP. Mestre em Ciências Sociais pela Unesp-Araraquara e Bacharel em Relações Internacionais pela Unesp-Franca.



Referências Bibliográficas


[1] Daszak, Peter. We Knew Disease X was Coming. The New York Times. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/02/27/opinion/coronavirus-pandemics.html>. Acesso em 16 de outubro, 2020.


[2] Kawakami, Aki. Why we like sad music. The New York Times. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2013/09/22/opinion/sunday/why-we-like-sad-music.html>. Acesso em 16 de outubro, 2020.


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