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O genocídio dentro do genocídio: quem são aqueles que deixam de respirar na pandemia?


#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Ao fundo, homens negros fazendo referência ao corpo dos jovens negros mortos e desaparecidos. No centro, Maurício (interpretado por Juan Paiva), personagem principal do filme "M-8: quando a morte socorre a vida", 2021. Fonte: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-266428/


O filme M-8: Quando a Morte Socorre a Vida (2021), dirigido por Jeferson De, nos conta a história de um jovem negro chamado Maurício, recém egresso do curso de Medicina em uma Universidade Pública do Rio de Janeiro. A trama se desenrola a partir da relação do jovem com um defunto de pele negra, igual a Maurício, um corpo sem vida, marcado pela identificação burocrática e fria de "M-8". O filme trata sobre processos de genocídio dos jovens negros no Brasil, possibilitando uma reflexão sobre o contexto atual de pandemia e o genocídio que está sendo potencializado no Brasil e nos países de capitalismo periférico, que estruturalmente têm menos recursos para compras de insumo, medicamentos, equipamentos e vacinas para sua população.


Maurício é um dos únicos negros da Universidade, e é interpelado, ou melhor, apontado pelo estigma de ser um negro nesses espaços brancocêntricos. O único lugar no qual ele se sente entre seus iguais é entre os funcionários da universidade e com os defuntos usados como estudo na aula de anatomia, dentre eles o cadáver de um jovem negro identificado como M-8. A narrativa do filme se desenrola na tentativa do jovem de saber mais sobre o tal cadáver que o assombra, e, nessa busca, Maurício descobre que M-8 faz parte de um incontável número de jovens pretos desaparecidos. Durante essa procura, o protagonista se depara com um grupo de mulheres negras protestando e rogando pelo retorno de seus filhos, mesmo que estivessem sem vida, pois a dor de não saber onde estão e de não poder enterrar seus mortos é imensurável. Paralelamente, a realidade brasileira de 2021, apesar de nos deixar encontrar os corpos, nega a possibilidade de velá-los e enterrá-los dignamente, com o avanço da pandemia e a superlotação dos necrotérios e dos cemitérios.


Nas últimas semanas, o Brasil alcançou a marca de 300 mil mortos pelos números oficiais, com uma quantidade de mortes diárias jamais antes vista, chegando a 3 mil. Com os cemitérios entrando em colapso em todos os Estados brasileiros, já foram encomendadas câmaras frigoríficas para empilhar os corpos. E a pergunta que fica é: de quem são esses corpos, de onde vieram e qual é cor deles?


#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: na imagem, o cadáver denominado no filme de M8 (Raphael Logam). Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=uk_rvigyFiQ&ab_channel=ParisFilmes


Ao contrário do que foi anunciado no início da pandemia, há um ano, o vírus não é democrático, ele tem classe, CEP e cor de pele [1], e, não por acaso, a primeira vítima em uma das mais importantes cidades do Brasil foi uma mulher preta, empregada doméstica [2], contaminada por sua patroa que contraiu o vírus ao voltar de uma viagem do exterior. Após o vírus sair do Leblon e Morumbi, ele segue avançando pelas comunidades mais pobres do Brasil, onde a pele em sua grande maioria não é alva, e sim pele alvo. Muitos M-8s começam a se empilhar nas valas comuns, e os números quase nos impedem de contar seus nomes e suas histórias. Os protocolos sanitários não permitem que os mortos tenham um enterro digno, algo presente desde os primórdios do nosso processo de socialização enquanto humanidade.


Também se engana quem pensa que esse genocídio em curso tem a ver somente com um vírus agressivo, como nos afirma Alysson Mascaro:


No fundamental, a dinâmica da crise evidenciada pela pandemia é do modelo de relação social, baseado na apreensão dos meios de produção pelas mãos de alguns e pela exclusão automática da maioria dos seres humanos das condições de sustentar materialmente sua existência, sustento que as classes desprovidas de capital são coagidas a obter mediante estratégias de venda de sua força de trabalho. O modo de produção capitalista é a crise. [...] O flagelo do desemprego, as habitações precárias para suportar quarentenas, as contaminações em transportes públicos lotados e a fragilidade do sistema de saúde são, exata e necessariamente, condições históricas de um modo de produção específico, o capitalismo. (MASCARO, 2020)

Algo que completa a afirmação do grande sociólogo brasileiro Darcy Ribeiro, "o Brasil é uma máquina de moer gente", é: de moer gente preta. A crise, o morticínio e o genocídio no Brasil que criaram esses empilhamentos de M-8s têm relação com a própria história do processo de construção desse país, na estruturação do modo de produção capitalista. E o joelho do capital nascido do navio negreiro ainda pressiona os pescoços da classe trabalhadora preta e pobre, que agora morre sufocada sem respirar nas filas dos hospitais aguardando um leito. E a pergunta retórica que fica é: incompetência ou projeto político?


Willian Marcos Antonio Silva

Graduando em História pela FFLCH-USP



Referências Bibliográfias:


[1] JUNIOR, Gonçalo. Risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior, diz Prefeitura de SP. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/05/risco-de-morte-de-negros-por-covid-19-e-62-maior-diz-prefeitura-de-sp.htm>. Acesso em: 18/abril/2021.


[2] MELO, MARIA. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm>. Acesso em: 19/abril/2021.


MASCARO, Alysson. Crise e Pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020.


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