Fonte: Site "Geonalta"
#PraCegoVer [ILUSTRAÇÃO]: Verbete de dicionário. Em um fundo preto, destaca-se no centro, em letras vermelhas, a palavra Koyaanisqatsi. Abaixo, em letras menores, brancas e também centralizadas, lemos: ko.yaa.nis.qatsi (from the Hopi language), n.1. crazy life. 2. Life in turmoil. 3. Life out of balance. 4. Life disintegrating. 5. A state of life that calls for another way of living. Em livre tradução, temos: ko.yaa.nis.qatsi (da língua Hopi), n.1. vida louca. 2. vida em tumulto. 3. vida fora de equilíbrio. 4. vida se desintegrando. 5. um estado de vida que exige outro modo de viver.
“Um estado de vida que exige outro modo de viver”. O que esperar de um filme com essa mensagem? Em poucas palavras, é possível dizer que Koyaanisqatsi, filme lançado em 1982, retrata nossa existência no mundo contemporâneo colocando em questão o que fazemos com nosso tempo, com nosso dinheiro e com os ambientes que nos cercam. Esses são os elementos fundamentais trazidos por Godfrey Reggio no filme, cuja narrativa é construída com o que há de mais poderoso na linguagem do Cinema: a união de imagens e sons em ritmos e enquadramentos diversos.
Juntos, esses elementos vão despertando em quem assiste uma série de incômodos, e é justamente essa provocação que faz de Koyaanisqatsi uma obra tão singular. A começar pelo nome, o filme rapidamente mostra a que veio. De origem Hopi - nação indígena estadunidense - koyaanisqatsi significa “vida fora de controle”. Para além da dificuldade de ser escrito e pronunciado, o título é ainda mais revelador quando entendemos seu sentido. Participante de uma organização social diferente da nossa, o olhar estrangeiro trazido à tona por meio da referência indígena observa a vida que levamos em nossa sociedade e dá o veredito: aí, onde o consumo dita o ritmo das relações, a vida está fora de controle.
Dito isso, temos que nos perguntar: que vida é essa que Reggio explora no filme? O que exatamente está fora de controle? Essas são perguntas cruciais que são respondidas pelo diretor em forma de arte cinematográfica experimental, provocativa e, acima de tudo, engajada. A vida que Koyaanisqatsi mostra é a que vivemos no capitalismo moderno, expresso pela sociedade do consumo. Nesse tipo de organização nós somos o que consumimos, e é só quando fazemos isso que aparecemos como cidadãs e cidadãos do mundo. Por mais cruel que seja, essa equação parece simples: para ser, é preciso consumir. Mas o que significa consumir? Trata-se apenas de comprar, utilizar e descartar produtos? Koyaanisqatsi dá a resposta, e ela é negativa.
Uma das grandes genialidades do filme está em mostrar que consumir implica não apenas em transações de objetos por dinheiro. Consumir envolve, antes de qualquer coisa, produzir para vender, e essa produção consiste na transformação dos recursos naturais em itens de valor. Nesse sentido, o capitalismo se mostra fortemente dependente da natureza, que já há anos dá sinais de que não suportará o ritmo de produção que temos. Diferente do que pensávamos, essa relação não será infinita e está em constante declínio, e a produção de Reggio nos mostra essa constatação em uma mistura de frames acelerados, ora descontrolados, que mesclam cenas da natureza e do cotidiano urbano em uma relação caótica, rápida, sufocante, e, acima de tudo, desequilibrada.
Diante desse quadro, fica a pergunta se o equilíbrio entre a sociedade do consumo e a natureza se restabelecerá, se ainda temos tempo de reverter essa relação tão desigual que criamos. Enquanto tentamos responder, seguimos vivendo assim: koyaanisqatsi.
Alice de Souza Araújo
Graduanda em Ciências Sociais (FFLCH/USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019-2020.
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