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122 itens encontrados para ""

  • Se está na internet, deve ser verdade

    #PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: A imagem, em tons azulados, apresenta em zoom uma barra de endereço eletrônico com os caracteres "http://www.". Fonte da imagem: TargetHost. “Um adjetivo relacionado ou evidenciado por circunstâncias em que fatos objetivos têm menos poder de influência na formação da opinião pública do que apelos por emoções ou crenças pessoais” [1], assim é definido o conceito da palavra pós-verdade, que ganhou o mundo em 2016 após ser concebida como a palavra do ano pelo Dicionário de Oxford. A pós-verdade trabalha justamente com o que o ser humano tem de melhor, os sentimentos e suas percepções pessoais de mundo, no entanto, nem sempre elas estão corretas, e se não forem postas em dúvida podem levar ao erro justamente pelo alto grau de confiança que temos em nós mesmos. Hoax (2016) é um curta metragem do diretor Thiago Amaral Ribeiro produzido com menos de R$ 100, que discute o papel que nossas convicções ocupam no vazio do pensamento crítico e da racionalidade, o sensacionalismo da mídia e a rapidez com que fluem as informações nas redes sociais. Esse vazio da crítica racional pode ser entendido principalmente pela falta de atenção com os vídeos recebidos, revelando, talvez, uma incapacidade de buscar por fontes ou escassez de alguma forma de educação científica que permita ao receptor buscar por seus destinatários primeiros. As convicções podem ser entendidas por aquilo que somos condicionados a pensar através do que a mídia dispõe ou aquilo que temos enquanto formação pessoal, ocupando, então, o papel do fato e do relato na falta dele. O desenlace para a história se dá quando um grupo de amigos decide gravar um vídeo com a câmera do celular em que um deles é assassinado, o vídeo, no entanto, serviria apenas para ser mostrado como uma brincadeira ou mesmo atrair olhares curiosos sobre a película pouco produzida. Um dos amigos decide compartilhar o vídeo, e ele viraliza nas redes sociais. As redes sociais desempenham um papel fundamental na história, pois é o principal canal de divulgação das imagens sem cuidado algum. Ainda que as pessoas duvidassem da veracidade do vídeo, o estrago já estava feito, pois as imagens estavam espalhadas por toda a internet e todos se perguntavam quem seria o assassino do jovem. A baixa qualidade do vídeo também é fundamental no enredo, visto que ela que ajuda a dar maior veracidade às imagens e suscitar certa originalidade do vídeo. Desta forma, as pessoas especulam que se fosse falso, a qualidade seria maior e o vídeo não teria uma atuação tão natural quanto é, ou seja, seriam utilizados atores mais profissionais, um local mais previsível e as imagens teriam maior grau de tratamento fotográfico. A mídia também ajuda a validar as especulações através das inúmeras imagens reproduzidas na televisão, que alimentam o imaginário e as crenças pessoais dos telespectadores. A vida dos jovens torna-se infernal devido a exposição das imagens e o grau que de repercussão que as tornam conhecida em todo o território nacional. A favela em que eles moram também se torna alvo de inúmeras invasões e as pessoas da periferia passam a sofrer violências devido a exposição. Com a grande repercussão, os jovens decidem desculpar-se e alertam a todas as autoridades que tudo não passava de uma brincadeira. Porém, muitos são aqueles que já possuem opinião formada acerca dos boatos, e preferem agarrar-se às suas próprias convicções pessoais tornando a gravação em uma verdade quase que consolidada por conta da visibilidade que se deu ao vídeo publicado. Ademais, podemos notar claramente que os contextos em que se intensificam ainda mais a relação binária entre o bem o mal, o preto e o branco, se dá devido a geografia do local, e a cor dos jovens. Portanto, as crenças e emoções são imprescindíveis no filme, que nos alerta acerca da difusão de informações duvidosas, do sensacionalismo midiático e do pensamento crítico em relação ao fato e a mentira. Nota [1] GENESINI, Silvio. A pós verdade é uma notícia falsa. São Paulo: Revista USP, n. 116, p. 45-58, janeiro/fevereiro/março 2018. Referências Bibliográficas HOAX. Direção: Thiago Amaral Ribeiro. In: Porta Curtas. 23 minutos, colorido. Disponível em: . Acesso em: 30 de janeiro de 2020. Paulo Ricardo da Silva Borges Batista Graduando em Letras - Português/Espanhol (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI

  • Pacificação ou repressão: às UPPs e a cultura periférica

    Fonte: blahzinga #PraCegoVer [Fotografia]: Uma parede de tijolos de diferentes tons de laranja onde está pichado a frase "CADÊ O AMARILDO" em letras de forma. No centro da imagem há um cano de plástico branco em formato da letra "L" ao contrário exposto. No canto superior direito há uma janela com grades aberta, onde se vê um homem negro em pé. A casa dessa janela também é feita de tijolos com diferentes tons de laranja. Abaixo da janela há uma escada. Em julho de 2013, Amarildo Dias de Souza, um ajudante de pedreiro e morador da Favela da Rocinha, foi sequestrado e morto por policiais militares integrantes da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Seu assassinato foi faísca para inúmeras manifestações em 2013, que denunciavam a repressão abusiva do Estado e o fracasso das UPPs. O caso de Amarildo tornou-se inspiração para o filme O Estopim (Mac Niven, 2014), um documentário filmado na Rocinha, que conta com relatos da viúva, Elizabeth Gomes da Silva, e do amigo de Amarildo e líder comunitário, Carlos Eduardo Barbosa, que compartilha sua vivência própria com a violência policial, a invasão de sua casa, as ameaças que sofreu pela polícia e a realidade das UPPs. O documentário possui um evidente clima pesado, com pouca cores, combinado ao céu nublado do Rio de Janeiro, a diversas vistas de casas da Rocinha, vídeos em tons escuros e alaranjados atravessando as ruas da comunidade, filmagens de segurança, áudios internos da polícia, fortes cenas de tortura e declarações dadas pelos moradores da favela, muitos apreensivos ao abordar o tema. Outros depoimentos servem para compor a vida de moradores de comunidades onde há a presença de Unidades de Polícia Pacificadora. O projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro, tinha, teoricamente, como objetivo a ocupação de áreas com altas taxas de criminalidade e grande presença de facções criminosas. Seu protocolo correspondia ao estabelecimento de sedes policiais permanentes para suposta proteção comunitária. Em muitas comunidades, as UPPs tiveram efeito contrário do que era intencionado na teoria. Rocinha, Complexo do Alemão e Complexo da Penha, por exemplo, tiverem seus confrontos entre a polícia e traficantes intensificados, que instalaram um constante clima de terror entre os moradores, amedrontados com o aumento dos tiroteios e da brutalidade policial. A proposta, encabeçada pelo então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que posteriormente foi preso por corrupção, tinha a intenção de declarar sua clara priorização da segurança pública, preparar a capital do estado para o recebimento das Olimpíadas e restringir o que é visto por muitos políticos como "degradação", a cultura periférica. O início das instalações das UPPs marcaram igualmente a ampliação da limitação de bailes funks, parte essencial da cultura e lazer do jovem da periferia. Ao mesmo tempo, houve o incentivo a sambas pagos e, consequentemente, frequentados ou por um público de classe média, que reside do lado de fora das favelas cariocas, ou por turistas, encantados com a cultura "exótica" (!) brasileira. Áreas ocupadas por UPPs passaram não apenas a ter em seu cotidiano a presença policial, mas também a ter seus eventos sujeitos à aprovação de autoridade estatal. Essa nova política sócio-cultural é digna de, no mínimo, questionamento quanto a sua seletividade na escolha do destino do patrocínio de lazer e cultura. Haveria uma preferência por eventos mais "palatáveis" turisticamente? Há, por trás da escolha, um julgamento moral? Quais critérios são usados para consentir um evento cultural? Por que o Estado insiste em conectar funk e , em um arco mais amplo, a cultura periférica com o tráfico de drogas ou a criminalidade em um geral? Referências: NIVEN Mac. O Estopim. 2014. Disponível em: . Acesso em: 30 de janeiro de 2020. Critica de filme | O Estopim. Disponível em: . Acesso em: 04 de fevereiro de 2020. Mariana Ramos, Graduanda em Ciências Sociais (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2020. #violênciapolicial #ondeestáAmarildo? #funk #moralismo #lazerperiférico

  • Carnaval, a festa da periferia

    Carnaval 2016: Desfile da Mangueira (Foto: Daniel Collyer/Hipermídia Comunicação) #PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Há uma plateia ao fundo da imagem segurando bandeiras diversas e de pé assistindo ao desfile. Ao fundo, à esquerda há uma pessoa fantasiada com adornos vermelhos e com balões de corações que flutuam. No centro e à esquerda, há um mestre-sala com uma fantasia branca e dourada com braços abertos e segurando a bandeira da escola de samba com a mão esquerda. No centro, à direita, está a porta-bandeira com uma fantasiada com um vestido branco com detalhes dourados e a borda do vestido com plumas amarelas. Ela também está com braços abertos e com a mão direita segura a bandeira da escola de samba. Tanto o mestre-sala quanto a porta-bandeira estão cantando. Que o carnaval é a maior festa do planeta, isso todo mundo já sabe. O que pouco se conhece, infelizmente, são os bastidores desse grande espetáculo. Apesar de ser um tema recorrente em diversas manifestações artísticas, no cinema, o carnaval dificilmente é abordado a partir da perspectiva de quem o produz, ou seja, da periferia. No Brasil, um dos grandes responsáveis por retratar o carnaval a partir desse olhar foi o cineasta Carlos Diegues. Conservando uma das principais características do Cinema Novo, de uma forma ou de outra, as obras de Diegues que têm o carnaval como objeto principal ou simples pano de fundo também acabam por escancarar questões sociais pouco discutidas. Em seu filme Orfeu (Carlos Diegues, 1999), o diretor usa como cenário para a trama a preparação que toda a comunidade do fictício “Morro da Carioca” faz para o grande desfile de carnaval. Mesmo passando por inúmeras dificuldades, tal como a repressão policial. É possível ver que, mais do que festa “para gringo ver”, o carnaval tornou-se um grande elemento da cultura da periferia. Como o maior palco para a folia no país, o Rio de Janeiro tem suas maiores escolas de samba com nomes homenageando bairros da zona norte e da baixada fluminense, como a “Estação Primeira de Mangueira”, vencedora do grande desfile de 2019. Além de Orfeu, que é um grande clássico do diretor, Diegues ainda tem muitas outras obras que buscam abordar o carnaval como contexto para inúmeros temas. Uma recente produção de que se pode falar, é o documentário Favela Gay (2013). Nele, através de entrevistas a diversas figuras da comunidade LGBT que vivem em favelas do Rio de Janeiro, é traçado um panorama sobre a situação desse grupo duplamente invisibilizado. A partir desse objeto principal, acaba sendo apresentado pelos entrevistados a participação da comunidade LGBT de periferia no carnaval. Mais do que uma simples aparição durante a festa, no documentário se fala sobre uma necessidade da população LGBT para a existência do carnaval. A liberdade em relação à sexualidade e sua performance, somada ao espírito alegre, característico da população residente das favelas atuais, são como a alma do clima de carnaval e, sem esses elementos, a festa não seria a mesma. Carlos Diegues, famoso por fazer filmes que abordam questões sociais latentes no Brasil, consegue, através dessas duas obras, falar sobre o que o favelado tem de melhor sem deixar de comentar as dificuldades que essa camada da população enfrenta. Os quilombos que existiam no Brasil durante a época da escravidão, além de um lugar de resistência e união da população negra, eram também o único lugar possível de expressão da cultura dos povos africanos. As favelas e periferias de hoje em dia traçam um caminho parecido: o lugar abandonado pelo Estado resiste produzindo sua arte e cultura. O carnaval é um dos maiores exemplos dessa construção. A grande diferença é que hoje em dia, o que era apagado e suprimido, é aplaudido. No entanto, essa obra prima produzida pela periferia ainda não é devidamente reconhecida como produto de sua autoria. Referências: Cacá Diegues toma posse como imortal da Academia Brasileira de Letras. G1, 2019. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2020 às 17:47. CARNAVAL, Mais. Enredos 2016 || Inocentes de Belford Roxo - Cacá Diegues - Retratos de Um Brasil em Cena. Youtube, 2015. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2020 às 18:32 KREUTZ, Katia. Cinema Novo. Academia Internacional de Cinema (AIC), 2018. Disponível em: . Acesso em: 05 de fevereiro de 2020 às 1:55. MÓR, Samira. Marcas de brasilidade na obra cinematográfica Orfeu, de Cacá Diegues. UFJF, 2011. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2020 às 18:08. Victoria Freitas, Graduanda em Letras, Português/Espanhol (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2020. #Carnaval #Cinema #LGBT #Favela #Periferia

  • Cicatrizes, marcas e lutas: a trajetória de sobreviventes

    #PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Foto com tom avermelhado de uma parede. O lado esquerdo tem 4 janelas, na janela do canto inferior esquerdo há um cartaz com a frase “posso me identificar?” . Ao lado da última janela, no canto inferior direito há a mensagem projetada “#FavelaQuerPaz” em letras garrafais brancas que se sobrepõe à uma cruz pregada. Fonte: Cleber Araujo e Cia. Semearte. São Paulo, 1 de dezembro de 2019. A data marca uma ação desastrosa promovida pela Polícia Militar em Paraisópolis, comunidade da capital paulista. De acordo com moradores, os policiais fecharam todas as ruas e usaram munições químicas como forma de reprimir o baile funk que acontecia no local, gerando tumulto e fazendo com que nove jovens, entre 14 e 23 anos, fossem pisoteados e mortos. Durante toda a repercussão e cobertura do caso foi comum observar diversos comentários aprovando a ação dos militares, muitos desses se apoiando nos argumentos de que esses bailes, supostamente, promovem a criminalidade, o tráfico e degeneração dos jovens. Esse tipo de pensamento apenas evidencia todo o preconceito enfrentado pelo funk e todas as demais formas de manifestações culturais vindas da periferia. Branco sai, preto fica. A frase que dá nome ao filme de Adirley Queirós (2015) foi dita por um policial no ano de 1986, numa ação que tinha o intuito de acabar com o baile realizado em Ceilândia - DF. O resultado da invasão: um jovem paraplégico e outro, com a perna amputada, ambos negros e moradores da periferia. O primeiro, vítima de um tiro nas costas e o segundo, brutalmente atropelado e esmagado por um cavalo da tropa de choque. As duas vítimas da violência do Estado brasileiro protagonizam o longa-metragem, que mistura os gêneros de documentário e ficção científica. O filme segue três linhas do tempo, se move ao passado para narrar todos os acontecimentos reais na noite da tragédia, se passa em um presente distópico dominado por um Estado autoritário e dá indícios de um futuro ainda mais perturbador. “Marquim” (Marquim do Tropa) começa por descrever todo o contexto do baile e a sua relação com a comunidade a partir de um relato pessoal extremamente detalhado e sentimental. Sua performance impressiona, principalmente se levarmos em consideração que esse foi seu primeiro trabalho como ator. “Sartana” (Dilmar Durães), que perdeu a perna no ocorrido, também se destaca tanto no tom documental, quanto na dramaticidade exigida pelo roteiro ficcional da produção. “Dimas Crava lanças” (Schokito) é representado com um agente vindo do futuro com a missão de coletar provas dos crimes cometidos pelos policiais no fatídico dia como forma de processar o Estado brasileiro criminalmente. Já “Marquim” e “Sartana” passam a desenvolver um plano em conjunto para atacar a capital Brasília e derrubar o sistema vigente. Diversas críticas às políticas do Estado são observadas durante o decorrer do filme, a “Policia do bem estar social”, representada como extremamente controladora e invasiva, pode ser interpretada como uma alusão aos longos anos de governos social-democratas no país, que nunca tomaram atitudes concretas para combater a violência policial contra negros e pobres. O futuro distópico é representado como um governo ainda mais autoritário, gerido por uma “aliança cristã”, um possível paralelo com a bancada evangélica do congresso brasileiro que defende pautas de segurança pública nocivas para as populações periféricas. O filme evidencia que o contexto de repressão à cultura periférica é algo histórico e sistêmico. Nosso contexto atual permite afirmar que essa dinâmica permanece, muitas vezes, com amparo de parte da sociedade e como política de Estado. O longa também nos permite enxergar a importância de atitudes concretas e a luta conjunta pela defesa da cultura e todas as formas de manifestação vindas da periferia. Referências HENRIQUE, Alfredo. “Veja quem são os jovens mortos em Paraisópolis”. Agora - São Paulo, 2019. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/12/veja-quem-sao-os-jovens-mortos-em-paraisopolis.shtml. Acesso em: 05/01/2020. “O governo Dilma é extremamente repressivo”. Carta Capital, 2015. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/o-governo-dilma-e-extremamente-repressivo-4045/. Acesso em: 05/01/2020. OWADA, Maurício. “Branco Sai, Preto Fica e a Ficção Científica. Revista Moviment, 2017. Disponível em: https://revistamoviement.net/branco-sai-preto-fica-e-a-fic%C3%A7%C3%A3o-cient%C3%ADfica-8564f4f29736. Acesso em: 05/01/2020. Yan Carvalho Graduando em Ciências Sociais (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI #resistência #cultura #periferia #funk #favela

  • Os povos indígenas são e(feitos) de sonhos

    Fonte da Imagem: "O Globo" #PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: À esquerda, um homem semi-nu em pé de perfil, segurando um chapéu de palha em sua mão esquerda, olha para a mulher a sua frente, à direita da imagem. A mulher veste um longo vestido vermelho que possui detalhes em marrom e em sua cabeça um lenço vermelho de grande extensão ao vento. Ela está de braços abertos e seu rosto está inclinado em direção ao homem. Ao fundo há um céu azul sem nuvens, e os dois estão descalços sobre um solo arenoso. Idealizadas e enjauladas por uma história escrita por seus colonizadores, às várias etnias decorrentes do o continente Americano travam a mais de 600 anos uma trajetória épica em busca de sobrevivência cultural, social e política contra o vasto vento forte de seu apagamento estrategicamente planejado. Do erro europeu ao chegar no Caribe em suas caravelas faraônicas e generalizar as inúmeras tribos nativas da região como “índios", pois acreditavam ter chegado às “Índias”, passando pelo processo de escravidão e catequização desses povos até o mítico genocídio completo de todos os descendentes dos clãs existentes surgiu um presente pouco falado e muito sugerido. Foi nesse contexto que o historiador Forrest Hylton e o cineasta Ciro Guerra viram a necessidade de dar luz, câmera e voz a Colômbia ancestral. É com a frase “É um lembrete ao mundo de que ainda estamos vivos” dita por Sergio Kohen Epieyú pütchipü'ü, autoridade que resolve os conflitos da tribo Wayúu, que habita a região de Guajira na Colômbia e parte da Venezuela, através de negociações que o documentário “Espíritus Guerreiros”de Forrest Hylton começa. Daqui em diante somos guiados pela narração feita por outros membros da tribo a respeito da chegada dos espanhóis a Guajira e dos costumes de seu povo. Já em “Pássaros de Verão” o cineasta Ciro Guerra também nos conta uma história baseada em fatos reais sobre dois “clãns” desse grupo indígena, em uma Colômbia entre os anos de 60 e 80, que conservam as suas tradições mas tem um diferencial, são ligados ao tráfico de Marijuana. Foi justamente nesse período que o comércio da erva explodiu do país em direção a outras regiões do mundo, ajudando tanto o desenvolvimento econômico quanto o narcotráfico. O conflito do filme se inicia quando o membro de uma das famílias se apaixona pela filha da matriarca de um grupo rival. Aliás, esse é um dos pontos interessantes da sociedade Wayúu que também é ressaltado pelo documentário, a autoridade natural da mulher, que a torna administradora dos bens patrimoniais e da parte espiritual do clã, guiando seus “filhos” quando existe algum sonho ou outra coisa que os perturbe. Apesar da união dessas famílias gerarem ofensas que posteriormente serão reparadas com sangue é a transgressão da tradição de um dos valores da comunidade que gera a grande discussões imposta. A partir do momento em que o estrangeiro se interessa por uma planta sagrada e alucinógena da região a degradação da comunidade se inicia e o rito ligado à planta ganha a finalidade de prazer momentâneo e comercial. Assim, após essa transformação de valores da comunidade o “outro/ não nativo” sai momentaneamente de cena e dá lugar a destruição dos membros do grupo indígena entre si. Essas duas filmografias retratam uma comunidade que é vítima do processo de colonização e de interesses mercantis que prezam o esquecimento do passado. O desvio do discurso eurocêntrico que instaura o exotismo e uma recriação caricata dos povos originários da América e que impregnam o imaginário de países, pessoas e livros faz de ambas as produções um grande acerto na história do cinema latino americano e mundial. É necessário rever para entender e fazer permanecer esse legado que também é nosso. Kelly Barbosa, Graduanda em Letras, Português/Espanhol (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2020. #Indígenas #TriboWayúu #Resistência #FilmografiaLatinoAmericana

  • O uso da tecnologia como luta e resistência

    #PraCegoVer [Fotografia]: Duas pessoas, um homem à esquerda levemente desfocado, e uma mulher à direita em primeiro plano. Ele está olhando na direção dela, veste colares feitos com sementes variadas e um cocar na cabeça com penas vermelhas e uma pena azul no centro. A mulher está com o cabelo preso, com um celular na mão, e o olha fixamente. Os dois estão com os rostos pintados com urucum. Eles estão em uma paisagem agreste, em um dia ensolarado. A cultura se dá por um conjunto de ações e repertórios sociais que conectam tanto a arte, as crenças e os comportamentos das pessoas em seu convívio social. Ainda que cultura possua definições tão amplas e particularizadas em cada território, continua sendo presente a estigmatização contra os hábitos culturais das populações de povos originários. No brasil, os povos indígenas hoje compõem 0,47% da população brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010)¹. Dentro deste grupo, há grande diferenças: culturais, de crenças e linguísticas, ao contrário da ideia de que são um bloco único, como é difundido na sociedade brasileira. Frases como “índio não pode usar celular” ou “índios estão parados no tempo” não compreendem as transformações constantes que eles vivenciam, assim como esse pensamento avalia de maneira impositiva a métrica do que seria uma civilização ideal. A partir deste panorama que nasce o documentário “Indígenas Digitais”, que mostra como várias etnias estão utilizando a tecnologia, e como ela se tornou parte de suas culturas. No filme, vemos integrantes de diferentes linhagens relatarem como celulares, computadores e, principalmente, a internet, são ferramentas de muita importância na busca de melhorias para as comunidades. Essas falas também demonstram as relações destas pessoas com o mundo globalizado, e com a conjuntura nacional do fortalecimento de uma retórica racista, a qual falaciosamente ressalta que os indígenas não são “produtivos". A atual política estabelecida pelo governo federal, caracterizada pelo avanço do neoliberalismo, foi legitimada por discursos de combate aos povos indígenas e quilombolas. Hoje, muitas terras, preservadas por diferentes etnias, têm sido cobiçadas pelo potencial de exploração mineral e agrária. Neste cenário difícil, ainda em um contexto de evolução constante da tecnologia, a busca por utilizar esta importante ferramenta para o fomento de garantias de direitos das populações indígenas e, inclusive, no combate do preconceito que deseja a exclusão delas no ciberespaço, é fundamental. O filme demonstra como a tecnologia agora não é apenas um recurso "externo", mas sim parte integral de suas culturas. Esta situação pode ser compreendida ainda melhor na fala da Cacique Jamapoty, que diz: “a gente precisa de ter essa tecnologia para falar para o mundo o que nós queremos, queremos também preservar, ter uma terra demarcada, ter uma saúde de qualidade, mas sempre observando que nós, povo indígenas, queremos viver nosso habitat, com a nossa liberdade, com o jeito de vida nosso.” É explícita a adequação e necessidades dos indígenas frente a era digital que se instaura diariamente. A sociedade brasileira ainda irá se surpreender com a potencialidade que vem pintada de urucum. ¹IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2000. Disponível em Rafael Bento Graduando em Ciências Sociais (USP) e bolsista do Projeto CineGRI 2019/2020. #direitoaterra #direitoindigena #culturasindigenas #respeitoadiversidade

  • A resistência de quem vive como o alvo

    A História positivista, como a que é propagada no ensino formal, é repleta de apagamentos em relação ao povo negro. Sua cultura, auto-estima, força, religião e humanidade foram e infelizmente persistem sendo aspectos muito negligenciados há séculos em decorrência da visão eurocêntrica que submeteu esta população a anos de escravização e genocídio. Isto concomitou em uma sociedade em que o racismo estrutural está institucionalizado, e como tal dificulta que pessoas negras se tornem e sejam representadas como cientistas, heróis ou guerreiros. Crianças negras crescem sem referências positivas, entravando a construção de uma autoestima saudável, autonomia e protagonismo. Considerando a hegemonia branca da indústria Hollywoodiana das últimas décadas, um filme como o Pantera Negra (2018), dirigido e com o elenco composto majoritariamente por negros, demonstra muita resistência, representatividade e resgate da auto-estima daqueles que sofreram com tanta displicência. O filme Pantera negra (2018) faz alusão ao movimento dos Panteras Negras - movimento radical na luta por direitos civis como liberdade, moradia, educação, fim da violência policial e encarceramento em massa da população negra. Em meio a efervescência deste movimento em 1960 - Stan Lee criou os quadrinhos que basearam o filme - o personagem T'Challa (Chadwick Boseman) é a personificação de um herói que protege o povo de Wakanda - e sua cultura. Ele luta por dignidade e boas condições de vida para seu povo. Este, envolve-se em diversas batalhas para proteger a população da tirania, combates para reconquistar seu lugar de direito, garantido através de sua ancestralidade e uma luta individual para para descobrir-se e auto-afirmar-se. Além dele, sua irmã Shuri é uma cientista genial (Letitia Wright) e Okoye (Danai Guarira), uma exímia guerreira que o ajuda a proteger Wakanda. Agora as meninas negras podem se inspirar em Shuri ou Okoye, assim como os garotos podem fazer o mesmo com T'challa. Negros podem ser cientistas, heróis, guerreiros e o que mais quiserem. Que a luta dos Panteras negras não seja esquecida, nem o que eles alcançaram. Que persistam espaços para que produções como esta do universo Marvel possam existir e se multiplicarem. A resistência que inspirou T'Challa, está presente nesta população. Este vem sendo um momento que o cinema, e tantas outras instâncias também serão espaços de negritude. Filme utilizado: Pantera Negra, 2018 (Ryan Coogler). Karolina da Silva Ávila, Graduanda de Bacharel em Geografia (FFLCH/USP), Bolsista do projeto CineGRI 2019/2020 #BlackPower #BlackPanther #Resistência #Identidade #DireitosCivis

  • A diversidade em cartaz em Hollywood

    #ParaCegoVer [Fotografia]: Duas imagens lado a lado divididas por uma linha branca, a primeira é de uma cena do filme "Us" (Jordan Peele, 2019) que mostra a personagem Zora Wilson (Shahadi Wright) encarando a câmera com uma expressão boquiaberta e olhos arregalados olhando para algo. A segunda é do filme "Crazy Rich Asians" (Jon M. Chu, 2018), na qual a personagem principal Rachel Chu (Constance Wu) aparece centralizada na imagem com um vestido de festa, e com várias pessoas com roupa de gala ao seu redor. Fonte imagem 1: https://www.thefourohfive.com/film/article/us-review-what-happens-when-our-shadows-run-free-and-what-the-hell-is-with-the-rabbits-155 Fonte imagem 2: https://www.smithsonianmag.com/smart-news/constance-wus-crazy-rich-asians-dress-coming-smithsonian-180972207/ Desde a sua criação, o cinema reúne pessoas e, como a arte, funciona como catalisador da expressão humana. Hollywood contribuiu para que o cinema fosse difundido no mundo através das grandes distribuidoras e estúdios. Sua hegemonia é notável, visto que grande parte dos filmes que dão lucros e são conhecidos pelo grande público vêm dela, os chamados "filmes comerciais". Apesar disso, essa indústria ainda é gerida por pessoas brancas, seja produzindo ou atuando. Isso resulta na existência de muitas polêmicas envolvendo whitewashing, termo utilizado para se referir a casos em que atores/atrizes brancos/as interpretam personagens de outras etnias, que reforçam muitas questões problemáticas acerca de representatividade - ou da falta dela. Por outro lado, a produção de filmes como “Crazy Rich Asians” (2018, Jon M. Chu) e “Us” (2019, Jordan Peele) atestam certa mudança nesse quadro. O primeiro filme, Crazy Rich Asians, é uma comédia que tem um elenco inteiramente asiático-americano e acompanha a professora de economia da NYU, Rachel Chu (Constance Wu) que viaja para Singapura, cidade natal de seu namorado, Nicholas Yong (Henry Golding), para acompanhá-lo no mega casamento de seu melhor amigo – e conhecer sua família. O segundo filme, Us, é um terror que apresenta uma família afro-americana como protagonista. Na trama, Adelaide (Lupita Nyong’o) e Gabe (Winston Duke) levam a família para passar um fim de semana na praia e descansar. Eles começam a aproveitar o ensolarado local, mas a chegada de um grupo misterioso muda tudo e a família se torna refém de seres com aparências iguais às suas. Os dois filmes foram aclamados pela crítica e pelo público e tiveram bons números de bilheteria. Isso é importante pois mostra que o público está aberto à diversidade nos filmes e em diferentes gêneros. Via Vogue Brasil, a protagonista de Crazy Rich Asians, Constance Wu, destaca que, para ela, um ponto importante é que o filme mostra a cultura asiática num cenário contemporâneo ao invés de partir para as dinastias chinesas ancestrais – como visto exaustivamente em várias sequências protagonizadas por Jackie Chan e em filmes como 'A Grande Muralha' (Zhang Yimou, 2015), por exemplo. “Isso aproxima as pessoas. É um filme que representa a inclusão”. Além disso, os dois filmes contam com elementos culturais importantes para diferentes grupos étnicos, representando a ocupação de espaços que tradicionalmente ou se apropriaram e distorceram muitas de suas tradições e traços culturais, ou simplesmente não os aceitaram. Em uma entrevista no Upright Citizens Brigade Theatre, Peele reforça esse sentimento ao dizer "Uma das melhores e maiores peças dessa história, é sentir que somos nós desta vez - um renascimento aconteceu e provou que os mitos sobre a representatividade na indústria são falsos". Essas produções são importantes para legitimar seu espaço na indústria e deixar de lado, mesmo que ainda timidamente, narrativas opressoras e de grupos dominantes. São passos pequenos para essa indústria, mas que podem inspirar e reforçar a luta de milhares de pessoas ao redor do mundo contra a hegemonia branca no cinema. Filmes Utilizados: Us (Jordan Peele, 2019); Crazy Rich Asians (Jon M. Chu, 2018). Mateus Pontes Ruivo Graduando em Educomunicação (ECA/USP) bolsista do Projeto CineGRI (2019-2020). #Identidade #CulturaAfroAmericana #CulturaAsiatica #Hollywood #Representatividade.

  • As velhas-novas políticas agrícolas

    A (des)produção alimentar “Governo aprova registro de mais 51 agrotóxicos, totalizando 262 no ano” [1]. No dia 22 de julho de 2019, grande parte dos jornais brasileiros veiculou manchetes parecidas com essa entre os meios de comunicação, as quais assustaram a população em geral. Não é todo dia que se aprova mais 51 tipos de veneno em sua alimentação. O assunto é muito bem trabalhado nos documentários O Veneno Está na Mesa I (2011) e O Veneno Está na Mesa II (2014), ambos de Silvio Tendler. Esses mostram a intensificação da produção agrícola no Brasil devido ao crescimento da exportação desses produtos motivado principalmente pelo mercado internacional [2], às respectivas consequências ambientais e sociais ocasionadas e os novos métodos de cultivo sem a utilização de produtos químicos, que surgiram mais recentemente. Em âmbito natural, o documentário aborda os danos trazidos ao meio ambiente em razão do uso dos agrotóxicos. O agricultor Fernando Ataliba relata que após 50 anos deste consumo nas lavouras, justificado como sendo um defensivo agrícola que controla pragas e aumenta a produção dos alimentos, a natureza foi progressivamente devastada: houve desde a perda de mananciais, da diversidade biótica e da fertilidade do solo, até a contaminação agressiva do solo e da água. O solo, como elemento vivo, finito na escala do homem e um dos principais influenciadores na agricultura, é um dos mais atingidos com essa intensificação. O ato acontece devido ao uso intensivo da terra e à contaminação por produtos químicos, o que ocasiona a perda de nutrientes e o sua consequente morte. O solo, produto da ação de cinco fatores naturais (material de origem, relevo, clima, organismos e tempo), demora em média 400 anos para se produzir 1 cm [3]. Em contrapartida, pode ser destruído em menos de 40 anos, a partir das práticas relatadas no documentário. O cultivo com agrotóxicos começou a se espalhar pelo mundo na década de 1980, contribuindo, desde então, apenas para a dinâmica dos agentes econômicos no mercado internacional em face da destruição ambiental e doenças sociais que se acentuaram. Desde 2008, o Brasil disputa com os Estados Unidos o topo dos maiores consumidores de agrotóxico do mundo. Em 2010, cerca de 92% desses produtos eram controlados por empresas internacionais vindas de diversos países como a Suíça, Estados Unidos, Alemanha, Holanda e Israel [4]. Segundo a geógrafa e professora da USP Larissa Mies Bombardi, na série produzida por Bob Fernandes e disponibilizado no Youtube [5], o Brasil aprovava em média o uso de 136 agrotóxicos por ano (entre 2008 e 2015). Entre 2016, 2017 e 2018, foram utilizados em média 450 novos tipos de agrotóxicos. Até julho de 2019, já foram aprovados 262 tipos. Dos liberados nas últimas semanas do mês de junho, 33% são classificados pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), no nível 1, o que indica ser muito tóxicos para a saúde humana. Segundo o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), 52% dos mesmos são nível 2, ou seja, são muito perigosos para o meio ambiente. Apesar da expansão da comercialização desses agrotóxicos por fatores econômicos, de modo que seu uso se torne lucrativamente rentável ao produtor, algumas pessoas ainda buscam métodos ecologicamente sustentáveis para a produção de seus alimentos. O documentário francês Demain (2015) dirigido por Cyril Dion e Mélanie Laurent, dá a volta ao mundo mostrando projetos, desde agricultura urbana à agroecologia no campo, que visam cuidar do meio ambiente de maneira a preservá-lo. O “demain” (amanhã, em português) precisa ser responsável, preservativo e saudável para a natureza e consequentemente para a vida humana. Raiane Forti Graduanda em Geografia (USP) e Bolsista do Projeto CineGRI Nota [1] , acesso em 05/08/2019, as 19:44. [2] BOMBARDI, Larissa Mies. A intoxicação por agrotóxicos no Brasil e a violação dos direitos humanos. Direitos humano no Brasil 2011: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. [3] , acesso em 06/08/2019, as 08:43. [4] BOMBARDI, Larissa Mies. A intoxicação por agrotóxicos no Brasil e a violação dos direitos humanos. Direitos humano no Brasil 2011: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. [5] Acesso em: 06/08/2019, as 09:04. Referência filmes: O veneno está na mesa: https://www.youtube.com/watch?time_continue=591&v=8RVAgD44AGg O veneno está na mesa 2: https://www.youtube.com/watch?v=fyvoKljtvG4 Amanhã: https://vimeo.com/251289725

  • Desenvolvimento ou despossessão?

    Neoextrativismo nas Américas Em 2016, um pequeno acampamento em protesto ao oleoduto na Reserva Standing Rock, inicialmente estabelecido para bloquear a construção do mesmo, se converteu no maior movimento indígena do século XXI nos Estados Unidos. A frase citada ao lado, na foto, foi dita por um dos membros da resistência indígena da Nação Sioux ao projeto milionário Dakota Access oil Pipeline (DAPL), proposto pela empresa norte-americana Energy Transfer Partners, arquitetado para construir um oleoduto de petróleo que percorrerá uma reserva indígena no estado de North Dakota. O documentário More than a Pipeline (Robert Bridgeman, 2017) conta a história do pecado original dos Estados Unidos, traduzido nas guerras que se estendem até os dias de hoje contra as comunidades que decidem se opor a projetos como o DAPL. More than a Pipeline é um documentário inspirado nos eventos reais de enfrentamento de forças públicas e privadas de segurança contra a resistência pacífica em Standing Rock. O embate poderia muito bem ser um thriller de espionagem e ação, se atitudes de empresas como a Tigerswan, contratada pela Energy Transfer Partners, fossem convertidas em drama cinematográfico. A partir do uso ilegal de inteligência artificial e vigilância nos acampamentos, e do uso estratégico de agentes do FBI, ali infiltrados para cooptar lideranças e realizar operações altamente militarizadas para a desocupação, empresas de segurança privada e Estado se confundem. Todos, porém, em defesa de um discurso, colocado acima de qualquer direito: o do desenvolvimento. Projetos extrativos, que exigem um investimento significativo por parte das empresas que os conduzem, muitas vezes envolvem o engajamento de táticas de segurança inspiradas em estratégias contra-terroristas empregadas pelos EUA em países como Iraque e Afeganistão. Não por acaso, empresas de segurança privada como Tigerswan e ISDM LLC têm um histórico de atuação nestes dois países. A experiência adquirida na guerra ao terror é diretamente aplicada em contexto de protestos pacíficos, como são os de Standing Rock e os das minas de ouro e prata na Guatemala, retratados nos filmes Sipakapa no se vende (Alvaro Revenga, 2015) e Minería y Corrupción: el caso de San Rafael las Flores (Colectivo Madre Selva, 2016). Ambas as produções cinematográficas abordam a resistência das comunidades locais à mineração de ouro e prata, respectivamente, expressa em consultas públicas nas quais a população vota majoritariamente contra a exploração mineral nos dois territórios. O colonialismo contemporâneo nas Américas tem nome. Se chama neoextrativismo. No mês de agosto, trataremos das diferentes faces do extrativismo contemporâneo, desde sua versão mais visível - como é o caso da exploração mineral, que viola territórios e polui corpos de água inviabilizando a subsistência e práticas tradicionais - até as expressões menos óbvias de extração, por meio da exploração das fontes de energias renováveis. Contaremos neste mês a história de mais de 500 anos pela defesa do território indígena, que inclui tanto a integridade da mãe natureza quanto das comunidades que têm suas terras como uma extensão de seus modos de vida tradicionais. Larissa Santos Geógrafa (USP) e Pesquisadora (University of Regina) Nota [1] Brown, Alleen, et al. “Leaked Documents Reveal Counterterrorism Tactics Used at Standing Rock to ‘Defeat Pipeline Insurgencies’”. The Intercept, 27 de maio de 2017, https://theintercept.com/2017/05/27/leaked-documents-reveal-security-firms-counterterrorism-tactics-at-standing-rock-to-defeat-pipeline-insurgencies/. Fonte da imagem: EJOLT. “Proyecto Minero El Escobal, Guatemala | EJAtlas”. Environmental Justice Atlas, https://ejatlas.org/conflict/el-escobal. Acessado 7 de agosto de 2019.

  • Refugiados e a questão xenofóbica no Brasil

    #ParaTodosVerem: Uma máquina de escrever toma toda a fotografia, no papel anexado a ela contém a palavra "REFUGEES", traduzido do inglês, refugiados. Segundo dados da ACNUR [1], os países considerados “em desenvolvimento”, pela agência, são os que mais recebem refugiados em todo o planeta. Nesse cenário, as principais nacionalidades das solicitações em trâmite no Brasil são aquelas oriundas da América Latina e da África [2], cujos imigrantes se dirigem às grandes cidades em busca de melhores condições de vida - um melhor emprego, uma melhor educação, uma melhor situação para constituírem suas famílias; se considerarmos, porém, a amplitude de causas que originam um deslocamento forçado, para além dos requisitos previstos para a qualificação de refugiado, que acabam por excluir razões econômicas, o número poderia ser ainda maior [3]. Ocorre que, ao pisarem em solo brasileiro, sua jornada de luta pela sobrevivência passa a trilhar apenas um começo. Embora o país tenha sua trajetória demarcada por várias ondas de imigração, do Norte ao Sul geográfico, sendo os retirantes parte da construção do povo brasileiro, nossa sociedade nem sempre favoreceu a entrada de grupos e indivíduos que se desviassem do estereótipo eurocêntrico almejado pelas elites. O Decreto-Lei nº 7.967, de 18 de Setembro de 1945, revogado apenas na década 1980, foi taxativo em seu art. 2º: "Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional. (grifo meu)". A lei reflete, em uma de suas faces, a cultura de uma civilização. O curta-metragem 100% Boliviano, Mano (RIFF e ONÇA, 2013) ilustra este paradigma. Choco é um jovem boliviano que vive junto com sua família de costureiras, no bairro do Bom Retiro em São Paulo. Um exemplo que traz luz ao debate se refere aos preconceitos sofridos por ele, em sua escola, por parte dos colegas de classe, inseridos no contexto social de repúdio à diferença. Além desse aspecto, a xenofobia, isto é, a aversão ou rejeição a coisas ou pessoas estrangeiras [4], também se encontra na carência de políticas públicas que deem suporte ao duro percurso desses imigrantes, estando a tarefa à disposição de organizações sociais que se mobilizam com a causa. Em decorrência disso, um último elemento está na dificuldade de se inserirem no mercado de trabalho formal, pelo estigma da "mão de obra barata": o que confronta os sonhos de Choco de não ser “mais um” costureiro em sua família. A xenofobia pode ser observada no Brasil em atos cotidianos e discursos políticos voltados às pessoas vindas dos continentes supracitados, reduzindo-as a um "peso" aos cofres públicos ou mesmo a uma "ameaça" à soberania nacional. O “muro” moral que se levanta a essa classe de imigrantes torna-se opressor, uma vez que se ignora sua situação de refúgio, em que, como tais, forçosamente, diante de fatores políticos, econômicos ou mesmo ambientais, tiveram de deixar para trás seus laços e raízes para se estabelecerem no novo país. Por não serem assim reconhecidos, são vistos e tratados como objetos de caridade, e não como portadores de direitos, como nos mostra Morikawa (2006). Sendo eles vulneráveis, a cultura xenofóbica existente no Brasil auxilia o tratamento discriminatório vivenciado por esses grupos diariamente, desmistificando a imagem de povo acolhedor - derivada de uma cordialidade aparente, apontada por Holanda (1936) - a qual o país se posiciona em suas relações. Mesmo ao apresentar hostilidades, o Brasil continua a ser o destino de centenas de bolivianos, venezuelanos, cubanos, haitianos, nigerianos e outros tantos, pois todos esses migram por necessidade, e projetam seu futuro com o fim de obter a naturalidade brasileira, tendo em vista o país destacar-se entre outras opções, e particularmente, em relação à América Latina, ser próximo daqueles que migram. Choco, por ser pessoa humana, "tem direito a ter direitos", como apresentou Hannah Arendt (1989), e como consagrado no art. I da Declaração Universal dos Direitos Humanos [5]. O que se vê, na prática, é o descumprimento reiterado à proteção, pelo país, e ao respeito, pelos cidadãos, aos refugiados. A sua recusa pelo Brasil, que se exterioriza em atos e discursos de ódio lançados contra sua existência e condição, representa uma contradição à própria história do país, que marcadamente se constrói, como visto ao longo dos últimos séculos, pela pluralidade cultural, étnica e racial em todas as camadas sociais. Rebeca Olívia dos Santos Graduanda em Direito (USP) e bolsista do Projeto CineGRI Referências [1] UNHUR. Disponível em: . Acesso em 30/05/2019. [2] UNHUR. Disponível em: . Acesso em 30/05/2019. [3] “O crescimento do número de empobrecidos contribuiu para o incremento da migração internacional que, no ano 2000, pode ter atingido 185 milhões de pessoas, de acordo com a divisão da população da ONU. Diante disso, surge a pergunta: Não seria a miséria uma nova forma de ‘perseguição’ motivada pela pertença ‘a determinado grupo social’? [...] as vítimas da violência, da miséria e das catástrofes naturais não se enquadram, de forma específica, na definição clássica de refugiado da Convenção de Genebra por não serem desamparados da proteção do próprio Estado. [...]” MILESI, Rosita. Refugiados - Realidades e Perspectivas Rosita Milesi. São Paulo: Loyola, 2003, p. 14-16. [4] Definição retirada do dicionário Michaelis. Disponível em: . Acesso em 1/08/2019. [5] “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 de dezembro de 1948. Art. I. Disponível em: . Acesso em 30/05/2019.

  • Tráfico negreiro e desigualdades raciais

    "Navio negreiro" era o nome dado aos navios de carga para transporte de escravos, especialmente os escravos africanos. Entre fins do século XV e o século XIX, mais de 12 milhões de africanos foram embarcados de forma involuntária rumo ao continente americano. O Brasil foi o maior receptor do tráfico, ultrapassando a casa dos quatro milhões de indivíduos ingressos (40% de todos africanos transportados no período), acarretando assim consequências diretas para a formação do povo brasileiro e posição dos negros na sociedade. Steven Spielberg, premiado cineasta e diretor de filmes aclamados, como a Lista de Schindler (1993), tentou retratar as condições subumanas nos porões dos navios negreiros no filme Amistad (1997). Na minha percepção, Spielberg pecou ao engrandecer grandes figuras políticas no filme, como a do ex-presidente dos Estados Unidos John Quincy Adams (Anthony Hopkins), um abolicionista não-assumido, que saiu do seu estado de comodidade para defesa dos africanos. Apesar disto, é um bom filme para ser assistido de forma crítica para um entendimento das condições deploráveis estabelecidas nos porões do navio. O filme aborda um período (retrata um acontecimento no ano de 1839) no qual se vinha discutindo assiduamente por todo continente americano a possibilidade de fim do tráfico negreiro e abolição da escravidão. No contexto brasileiro, a complexa discussão nos mostrava que um dos posicionamentos principais era interromper o fluxo de escravos em busca de uma futura homogeneidade e regulação da reprodução dos negros, que, segundo "letrados" da época, corrompiam o país com os seus costumes. Ou seja, dentro da complexidade dos processos de fim do tráfico de escravos, a finalidade desses não era a inserção dos negros na sociedade e a sua equiparação em direitos políticos, econômicos e sociais, mas sim a manutenção da exclusão social desta etnia. Dois fatores nos ajudam a compreender essa corrente de pensamento: O primeiro, foi a aplicação da Lei de Terras em 1850 no Brasil, que dificultou propositalmente o acesso às terras a negros recém libertos; O outro, foi o incentivo da vinda de imigrantes europeus para o país com o objetivo de embranquecimento populacional na segunda metade do século XIX. Essas duas ações práticas, nos mostram que a gradualidade do fim do trabalho escravo, era acompanhada pela preocupação e imposição de métodos e leis para a manutenção das hierarquias sociais entre brancos e negros. Assim, deve-se também tomar cuidado com o filme de Spielberg e sua possível visão maniqueísta do período histórico exposto em Amistad, mesmo que ele se refira a um contexto político de outro país, no caso, dos Estados Unidos. O documentário Raízes do Brasil (Nelson Pereira dos Santos, 2004) nos mostra essa complexidade na formação do povo brasileiro na visão do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Rompendo com a ideia da existência de uma democracia racial no país, ele nos mostra a tentativa de manutenção de uma hierarquia social que teve seu longo processo de construção durante os aproximadamente 400 anos de imigração forçada, e que se mantém por meio da aplicação de outros métodos racistas até os dias atuais. Apesar da pouca quantidade de obras cinematográficas que abordam especificamente o tráfico negreiro, há filmes que nos ajudam a compreender as desigualdades raciais em diferentes momentos históricos, como 12 anos de escravidão (Steve McQueen, 2014) e Bem-vindo a Marly-Gomont (Julien Rambaldi, 2016) que exemplificam dois contextos distintos e a manutenção de disparidades étnico-sociais. Rodrigo Lima Graduando em História (USP)

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